28 agosto 2010

Dor crônica

A causa desse fenômeno é tão vasta e complexa como a própria dor. Questões socioculturais, as formas de trabalho e os avanços da Medicina que proporcionam sobrevida mesmo em casos de doenças que em outro momento seriam fatais, são alguns dos possíveis caminhos para uma melhor compreensão desse quadro



Por Melissa Coutinho
Pisicóloga clínica de orientação Lacaniana, especializada em Somatic Experiencing.

A Associação Internacional para o Estudo da Dor (IASP) conceitua 'dor' como uma "experiência sensitiva e emocional desagradável decorrente ou descrita em termos de lesões teciduais reais ou potenciais". Para algumas pessoas essa pode ser uma definição difusa, pouco clara e muito ampla. Mas é exatamente esse caráter abrangente que permite que seja englobada a vivência do indivíduo. A dor é algo real, concreta na medida em que é experienciada, mas é também subjetiva, pois a vivência interna dela e a própria descrição da dor é uma experiência subjetiva e individual.

A dor crônica pode ter inúmeras causas, entre elas doenças reumáticas, câncer, acidente, LER/DORT (lesões por esforços repetitivos/ distúrbios osteomusculares relacionados ao trabalho), processo cirúrgico ou por algum outro transtorno que gere efeito no corpo. Doenças crônicas são assim classificadas devido ao período prolongado de tratamento; devido ao tipo de evolução da doença ou afecção, e/ou às respostas aos tratamentos, geralmente lentas e de efeito aquém do esperado na terapêutica usualmente utilizada.

Dor física e dor psíquica

A definição de dor é mais complexa, ampla e subjetiva. Na atualidade, convive a distinção entre o conceito de dor física e dor psíquica. O primeiro bastante difundido e aceito, bem definido pela Neurofisiologia, tratada com a terapêutica médica adequada a cada caso. O segundo, muito pouco compreendido, é pouco estudado e, geralmente, sem tratamento adequado. Além disso, a dor psíquica é vista apenas como uma consequência dos processos das enfermidades físicas. É relevante considerar, ainda, outro viés em relação à dor, que é a "origem da dor" no psíquico. Causas que podem ser chamadas de subjetivas ou pessoais, que com o tempo, com a insistência e repetição de padrões internos (forma como o indivíduo está estruturado perante o mundo) e externos (comportamentos), acabam por se tornar uma enfermidade física.

Para um olhar analítico, não há divisão entre dor física e dor psíquica. Essa ambiguidade que envolve a definição do conceito e o próprio tratamento da dor revela a sua complexidade. Isso exprime a necessidade de centros específicos no tratamento da dor crônica. Se partirmos do pressuposto que o ser humano é um ser multidimensional, então o corpo físico passa a ser um desses níveis, e não o único. Além disso, esses níveis são interligados e se influenciam mutuamente, de forma direta e imediata. Inconsciente e consciente, corpo e psique são dois lados de uma única moeda - o organismo.

Não existe o corpo que sofre, existe um corpo sofrido. É a pessoa que sofre, e ela sofre por inteiro. Um indivíduo que apresenta uma situação de sofrimento, de dor está imerso em um contexto familiar, social e cultural. Isso configura um quadro em que a dor vivida é modulada conforme a experiência pessoal daquela dor. Ela não é apenas um processo neurofisiológico, mas algo que ultrapassa essa compreensão estrita, e se inscreve no campo existencial.

Por isso, quando nos deparamos com quadros complexos, multifatoriais, torna-se difícil trabalhar se não for levando em conta os tratamentos adequados para cada nível específico afetado. Nesse contexto, é imprescindível trabalhar com uma equipe multidisciplinar, pois o trabalho com pacientes que sofrem de dor crônica exige uma rede de troca de informações. Por exemplo, nestes casos, o psicoterapeuta deve acompanhar o processo não só do próprio tratamento analítico, mas conhecer a evolução dos outros tratamentos, das medicações que o paciente está utilizando, e das alterações/ajustes ao longo do percurso. O trabalho deve possibilitar a união de forças para promover um suporte e um direcionamento mais adequado do tratamento. Afinal, estamos lidando com um organismo, corpo e psique, que se encontra em desarmonia, e a dor é um fenômeno que ultrapassa a experiência de um profissional isolado.

No tratamento da dor crônica a equipe de profissionais engloba diversas áreas e especialidades: Clínica da dor, Psiquiatria, Reumatologia, Neurologia, Neurocirurgia, Ortopedia, Cirurgia da mão, Cirurgia buco-maxilo- facial, Acupuntura, Fisioterapia e Psicologia, dentre outras. A equipe trabalha objetivando o controle da dor, a melhora funcional, a reintegração biopsicossocial e a ressignificação da dor.

Por meio da arte

Segundo a revista Espaço Aberto, editada pela Universidade de São Paulo, as alterações químicas do cérebro provocadas pela dor crônica geram depressão. A prevenção está no próprio hábito de vida das pessoas. Há aqueles que utilizam a arte como forma de terapia: "Com isso conseguem superar a dor intensa que sofrem, porque ocupam a mente, elemento fundamental no reconhecimento da dor", afirma Mário Escobar, voluntário no setor administrativo do Centro de Dor do Hospital das Clínicas e coordenador da Expo Arte-Dor.

Por causa dos diferentes aspectos da dor crônica, é imprescindível que o tratamento ocorra com uma equipe multidisciplinar que favoreça uma rede de troca de informações

Psiquiatra e paciente

Existem alguns casos em que o suporte de um psiquiatra é necessário para estabilizar o quadro psíquico, possibilitando à pessoa readquirir a condição de poder entrar em processo analítico, pois não é possível refletir sobre as suas questões se toda sua energia psíquica está convergindo em função de conseguir uma estabilização. Isso acontece nos casos de ansiedade e depressão grave, onde algumas vezes a própria vida do indivíduo está em jogo.

O paciente de dor crônica geralmente vem de uma caminhada de sofrimento, em que se sente incompreendido, perdido, muitas vezes com a sua vida totalmente modificada em diversos contextos, como na família, gerando impacto psíquico, com sintomas como depressão e ansiedade, e no trabalho, como a relação com a profissão e sua estabilidade econômica.

O psicoterapeuta, se valendo de um bom suporte teórico e de valores éticos imprescindíveis, deve estar atento para um manejo adequado, levando em conta a história do indivíduo, o contexto em ele vive hoje, e as circunstâncias envolvidas no processo do adoecimento.

O psicoterapeuta não ocupa o lugar de um amigo íntimo, que está ali para ouvir os problemas e dar conselhos. Ele está como uma pessoa amistosa, sim, empática para escutar, para oferecer um espaço seguro e acolhedor para que o próprio cliente se escute, para que ele mesmo encontre suas respostas, para que ele encontre o caminho de sua reconstrução interna, de sua unidade, de sua saúde. O processo de reconstrução é necessário para quem está passando por essa situação, onde muitas vezes a imagem que se tem de si é destroçada, como se o corpo se partisse em pedaços.

É preciso que o profissional que atue nessa área tenha a sensibilidade de perceber as diferenças entre as pessoas, seu funcionamento peculiar e suas necessidades individuais.

Trabalhar no sentido de ajudar o indivíduo a acessar seus próprios recursos, além dos recursos externos, sociais e culturais que estão à sua volta, uma vez que a conceituação e o tratamento da dor crônica tem engendramentos que um olhar superficial não alcança.

No tratamento da dor crônica, a equipe de profissionais engloba diversas áreas e especialidades. Aa acupuntura é considerada um método de tratamento complementar com o objetivo de controlar a dor e obter a melhora funcional do paciente


Consequências da dor crônica


O quadro de dor crônica pode gerar, entre outros aspectos:

Desesperança: tentativa de diversos tratamentos, sem ter a resposta esperada;

Cansaço: geralmente são tratamentos que exigem muito tempo e disponibilidade (vários dias da semana, várias horas por dia), passando por diversos profissionais (fisioterapeuta, acupunturista, médico da dor, psicoterapeuta, etc.);

Resistência à adesão aos tratamentos: "Já fiz tanta coisa e não tive melhora, não quero mais nada, não acredito mais", "Não gosto de tomar remédio", "Tenho medo de ficar viciado nesses remédios tarja preta", "Já tomo muita coisa, não vou tomar mais ainda";

Medo: dúvidas em relação ao diagnóstico e ao próprio tratamento: "O que é que eu tenho mesmo?";

Raiva: devido às perdas que vem sofrendo ao longo do caminho nesse contexto; as relações que vem sendo alteradas, seja na família, seja no trabalho, seja com seu próprio corpo;

Impotência: perante a realidade que está vivenciando;

Questões envolvendo identidade: o indivíduo perde o seu lugar social, pois não pode mais exercer as funções que tinha (por exemplo: um pai de família que sustentava a casa e que está afastado há um ano, algumas vezes sem receber seu salário por questões burocráticas do sistema, como data da perícia, prazo para liberação, etc, e que também não pode fazer nada dentro da própria casa, pois qualquer esforço físico detona o processo de dor);

Estranhamento: muitas vezes do próprio corpo e até do próprio eu;

Além desses sintomas, é também frequente existir a alteração do sono, do apetite e do humor.


A tenção aos sinais


A dor é sempre um alerta, um sinal de proteção que diz que algo não vai bem. O que as palavras não dizem, o corpo fala. Por isso, quando o cliente chega ao consultório de psicoterapia encaminhado por outras especialidades, é comum ele não saber do que se trata, de como funciona e só estar ali porque o "doutor mandou ele ir". Está fragilizado, perdido, sentindo-se impotente e vendo a sua vida cada vez mais ser reduzida à própria dor. O indivíduo deixa de sentir dor, e passa a ser a própria dor.

O rio é uma boa metáfora para esse processo. Antes, com margens largas, com um fluxo de água satisfatório, com o tempo vai se estreitando, vai diminuindo seu fluxo e ficando cada vez mais raso e fraco. O trabalho do psicólogo caminha no sentido de o indivíduo voltar a ampliar esse fluxo, de novamente ter margens largas, ter um fluxo energético satisfatório, um fluxo de vida saudável.

Para tanto é fundamental que o psicoterapeuta tenha clareza de suas bases teóricas, e uma visão ampla de processo e de funcionamento da psique - consciente e inconsciente. É preciso devolver o sintoma ao lugar simbólico a que ele pertence. É importante que, ao longo do tratamento, a pessoa passe a entender o significado desse sintoma na sua vida, como surgiu, a serviço de que ele se fez presente, e possa ressignificá-lo.

Na medida em que isso vai acontecendo, se descortina uma realidade que, até então, ele não sabia que estava ali, e que muita vezes "não quis saber", ou que "não podia saber", por não ter o ego suficientemente estruturado e que desse conta com o que ele iria se deparar. O caminho para romper esse ciclo vicioso que a dor impõe, é compartilhar essa experiência.

Dividir, ser ouvido e se ouvir.

De repente, ele percebe que não está mais só, que tem um lugar para ele, para que ele possa estar com ele mesmo. E, ao longo desse caminho, de forma cuidadosa e devagar, a fragilidade, o cansaço, a tristeza, e as dúvidas aos poucos e de forma consistente, vão se transformando e dando lugar à força, às respostas, ao autoconhecimento. O indivíduo passa a "caber no seu corpo", e vai além dele. Passa a se perceber como muito mais do que um corpo.

A realidade de antes, com todas as limitações físicas e psíquicas envolvidas pode ser transformada, pois só se muda o que se conhece. Á medida que o processo de análise avança, novas descobertas acontecem, novas formas de pensar e de sentir começam a ser possíveis. Uma nova forma de viver, de estar no mundo se configura. Esse novo lugar de existência é congruente, estruturante e confortável.

O contato com pacientes de dor crônica ensina que é preciso construir uma prática com bases conceituais consistentes, com uma visão ampla de processo, e com flexibilidade para os ajustes necessários. A linguagem é a ponte que possibilita que todo tratamento aconteça. Na medida em que ele fala, ele já não está só, preso no seu mundo de dor e sofrimento, absorvido e reduzido às suas experiências e ao sentimento de impotência e fragilidade. Quando a relação com o outro que o escuta, que está ali para lhe assegurar um lugar seguro e coerente para essa jornada de autoconhecimento se estabelece, a pessoa pode começar a dizer sobre si, descobrir novas perspectivas e ganhar um novo olhar perante a vida.

Com a compreensão sobre a sua vida, sobre si mesmo, seu corpo e suas emoções, a pessoa passa a ter mais recursos, passa a ter condição de se implicar no seu processo. Ela passa a descobrir novas formas de se relacionar, de conviver e de produzir com dignidade e alegria.
o psicoterapeuta pode contribuir para que o paciente se escute, e encontre suas próprias respostas. Esse processo de reconstrução é necessário para quem sente dor crônica, quando, muitas vezes, a imagem que se tem de si e do mundo é distorcida

o suporte de um psiquiatra pode estabilizar o quadro psíquico, evitando ou minimizando casos de ansiedade e depressão grave apresentados por pessoas que sofrem de dor crônica

Referências

ALVES NETO, O.; CASTRO COSTA, C.M.; Siqueira, J.T.T.; TEIXEIRA,M.J. Dor - Princípios e Prática. Porto Alegre: Ed. Artemed, 2009.


JACOB, M. O encontro Analítico: Transferência e Relacionamento Humano. São Paulo: Ed. Cultrix, 2008.


NASIO, J.-D. A dor física. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 2008.


NASIO, J.-D. A dor de amar. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 2007


LEVINE, P. A. Despertar do Tigre: Curando o trauma. São Paulo: Ed. Summus, 1999.




Publicação:revista Psique & Vida 55

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