Casa
Quarta feira, 9 de Nov de 2011 Por: Vitor Hugo Mãe |
De volta a casa, por um breve dia. Apetece-me passar o tempo todo abraçado ao Santo António da Júlia Côta, ao edredão branco pintalgado pelos marcadores de todas as cores, aos quadros da Isabel Lhano ou aos discos do Antony. Como não quero ser sentimental, imagino que as minhas coisas se sentem sozinhas. Se puser a tocar o Soft Black Stars, vou achar que a casa se levanta e vai embora, tão carente, tão sem mim.
Há uma intensidade demasiada que se sente no regresso, algo que nos ilude acerca de uma casa ser quase gente, pensar, esperar por nós tanto quanto a queremos, tanto quanto temos saudades dela, mesmo que não seja perfeita, mesmo que não seja mais do que o lugar onde remediamos o nosso tempo. Porque é o lugar onde somos sem máscaras e sem mediação. Não nos mediamos. Tudo está, de algum modo, preparado para nos corresponder. Como se tudo gostasse de nós.
Acho que escolhemos as coisas de que gostamos como se fosse possível uma relação recíproca. Aquilo de que gosto põe-se como se gostasse de mim também. Estar em casa é isso, rodearmo-nos de todas as coisas que nos amam e que, por isso, nos servem para a felicidade, nem que seja apenas por estarem ali.
Não é estranho, assim, que acredite que o Santo António mereça o meu abraço, porque está ali, é lindo, gosto tanto dele que me convenço de que ele também gosta de mim. Tenho-lhe carinho. Mais ainda porque gosto da Júlia Côta e é como ter modo de também a abraçar e ter companhia, mais companhia, em casa. Na minha casa, não a perfeita mas a possível, até porque só do que é possível podemos fazer vida, o resto é sonho e vale apenas como tal.
Consegui voltar e evitar um hotel, um apenas, mas o suficiente para me deixar vir compor as costas no colchão que conheço, deitando a cabeça na almofada muito baixa que tem a medida exata que me deixa dormir como os anjos inventados pelos livros. Estou há dias com as costas reviradas, também por receber o inverno com esta chuva toda que me enerva. Eu sei que a chuva é importante e blá blá blá, mas havia de se arranjar modo de ir cair, como por uma torneira educada, nos sítios certos, e não na minha careca desprotegida e ansiosa apenas por beleza e sossego.
Saem-me só duques, como dizia o meu pai a jogar a sueca. Passei dois dias no Fénix Garden de Lisboa, quarto 102, um milagre da arquitetura. Abrimos a cortina e vemos apenas uma parede. Ando há milénios a dizer que gosto daquele hotel, mas sempre fiquei alojado nos quartos das traseiras, a ver, digamos, os quintais. Apenas uma vez me puseram num quarto da frente, com vista para todo o parque Eduardo VII, a parecer que voamos. Uma vez, que foi o suficiente para que soubesse o quanto é triste ficar no lado dos quintais. Mas nunca imaginei como pode ser ainda mais triste se ficarmos no 102, no fosso, a chuva a cair louca e nós encaixotados sem tréguas, sem fuga.
Se eu não fosse um vidrinho de cheiro, tinha ido à receção explicar que sou um careca com ansiedades de beleza e sossego, e que esperava ver nem que fossem os quintais, para me inspirar para a bondade da vida e mais aquela coisa toda da busca incessante de tópicos interessantes para histórias e poemas. Mas sou um vidrinho de cheiro. Chego e abanco onde os hotéis me acham bem. Mas, passado um certo limite, não volto mais. Digamos que ardo de frustração, fico em cinzas pequeninas e muito humilhadas e depois renasço noutro hotel qualquer.
Devo ter cara de músico rock, com ar para queimar os lençóis com charros ou desacertar na sanita quando faço chichi, porque sempre há tendência para me mandarem para os quartos mais desenrascados, coisa que me começa a enervar profundamente. E nunca fumei charros, anotem e não me azucrinem mais com esses preconceitos. Nunca usei drogas.
Bem, na verdade tomei aspirinas, paracetamol e Cholagut, mais nada.
Voltar a casa, com maior ou menor vista, sossega-me. Acho que é isso. Vivo como posso e, como posso, não me ofende e já não me defrauda. Não mudo de quarto, não mudo de paisagem, mas já sei o que me espera e esperam-me as coisas que quero e isso respeita-me. Sinto um profundo respeito por onde vivo. Como sinto um respeito profundo pelos lugares de cada pessoa. Com os seus cacos e paninhos, com os seus quadros tortos e as suas televisões húmidas, com os tapetes da feira da Estela surrados pela água e limpos à vassourada. Como sinto respeito pelas casas elegantes de quem pode, pelo bom gosto e pelo cuidado, como sinto respeito pelo que cada um pode ter e tem por dignidade.
Uma vizinha veio oferecer-me um copo alto de cerveja, muito alto como já não se fabricam. Parece uma taça. Dizia ela que é para, quando houver festa, eu ter um copo maior, à altura do bonito que tenho feito e do orgulho que as pessoas daqui sentem por isso. Vou guardar o copo como um troféu desses afetivos. Um desses objetos que nenhum hotel tem e que, depois de uma temporada demorada por aí, me vai saber bem abraçar, para lhe matar as saudades e garantir que não se sente demasiadamente só. Como se abraçasse no copo todos os vizinhos. A minha casa inteira, o lugar da minha casa inteira.
Há uma intensidade demasiada que se sente no regresso, algo que nos ilude acerca de uma casa ser quase gente, pensar, esperar por nós tanto quanto a queremos, tanto quanto temos saudades dela, mesmo que não seja perfeita, mesmo que não seja mais do que o lugar onde remediamos o nosso tempo. Porque é o lugar onde somos sem máscaras e sem mediação. Não nos mediamos. Tudo está, de algum modo, preparado para nos corresponder. Como se tudo gostasse de nós.
Acho que escolhemos as coisas de que gostamos como se fosse possível uma relação recíproca. Aquilo de que gosto põe-se como se gostasse de mim também. Estar em casa é isso, rodearmo-nos de todas as coisas que nos amam e que, por isso, nos servem para a felicidade, nem que seja apenas por estarem ali.
Não é estranho, assim, que acredite que o Santo António mereça o meu abraço, porque está ali, é lindo, gosto tanto dele que me convenço de que ele também gosta de mim. Tenho-lhe carinho. Mais ainda porque gosto da Júlia Côta e é como ter modo de também a abraçar e ter companhia, mais companhia, em casa. Na minha casa, não a perfeita mas a possível, até porque só do que é possível podemos fazer vida, o resto é sonho e vale apenas como tal.
Consegui voltar e evitar um hotel, um apenas, mas o suficiente para me deixar vir compor as costas no colchão que conheço, deitando a cabeça na almofada muito baixa que tem a medida exata que me deixa dormir como os anjos inventados pelos livros. Estou há dias com as costas reviradas, também por receber o inverno com esta chuva toda que me enerva. Eu sei que a chuva é importante e blá blá blá, mas havia de se arranjar modo de ir cair, como por uma torneira educada, nos sítios certos, e não na minha careca desprotegida e ansiosa apenas por beleza e sossego.
Saem-me só duques, como dizia o meu pai a jogar a sueca. Passei dois dias no Fénix Garden de Lisboa, quarto 102, um milagre da arquitetura. Abrimos a cortina e vemos apenas uma parede. Ando há milénios a dizer que gosto daquele hotel, mas sempre fiquei alojado nos quartos das traseiras, a ver, digamos, os quintais. Apenas uma vez me puseram num quarto da frente, com vista para todo o parque Eduardo VII, a parecer que voamos. Uma vez, que foi o suficiente para que soubesse o quanto é triste ficar no lado dos quintais. Mas nunca imaginei como pode ser ainda mais triste se ficarmos no 102, no fosso, a chuva a cair louca e nós encaixotados sem tréguas, sem fuga.
Se eu não fosse um vidrinho de cheiro, tinha ido à receção explicar que sou um careca com ansiedades de beleza e sossego, e que esperava ver nem que fossem os quintais, para me inspirar para a bondade da vida e mais aquela coisa toda da busca incessante de tópicos interessantes para histórias e poemas. Mas sou um vidrinho de cheiro. Chego e abanco onde os hotéis me acham bem. Mas, passado um certo limite, não volto mais. Digamos que ardo de frustração, fico em cinzas pequeninas e muito humilhadas e depois renasço noutro hotel qualquer.
Devo ter cara de músico rock, com ar para queimar os lençóis com charros ou desacertar na sanita quando faço chichi, porque sempre há tendência para me mandarem para os quartos mais desenrascados, coisa que me começa a enervar profundamente. E nunca fumei charros, anotem e não me azucrinem mais com esses preconceitos. Nunca usei drogas.
Bem, na verdade tomei aspirinas, paracetamol e Cholagut, mais nada.
Voltar a casa, com maior ou menor vista, sossega-me. Acho que é isso. Vivo como posso e, como posso, não me ofende e já não me defrauda. Não mudo de quarto, não mudo de paisagem, mas já sei o que me espera e esperam-me as coisas que quero e isso respeita-me. Sinto um profundo respeito por onde vivo. Como sinto um respeito profundo pelos lugares de cada pessoa. Com os seus cacos e paninhos, com os seus quadros tortos e as suas televisões húmidas, com os tapetes da feira da Estela surrados pela água e limpos à vassourada. Como sinto respeito pelas casas elegantes de quem pode, pelo bom gosto e pelo cuidado, como sinto respeito pelo que cada um pode ter e tem por dignidade.
Uma vizinha veio oferecer-me um copo alto de cerveja, muito alto como já não se fabricam. Parece uma taça. Dizia ela que é para, quando houver festa, eu ter um copo maior, à altura do bonito que tenho feito e do orgulho que as pessoas daqui sentem por isso. Vou guardar o copo como um troféu desses afetivos. Um desses objetos que nenhum hotel tem e que, depois de uma temporada demorada por aí, me vai saber bem abraçar, para lhe matar as saudades e garantir que não se sente demasiadamente só. Como se abraçasse no copo todos os vizinhos. A minha casa inteira, o lugar da minha casa inteira.
Fonte: JL
Retalhos no Mundo:
Como é a sua relação com a sua casa?
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