Primeiro, surge-lhe uma ideia, vaga, daquilo que quer explorar através da escrita. Depois, as personagens. E, como elas, tudo o resto: o tom, o ritmo, a história. O livro. Para Sónia Cravo, 36 anos, são as personagens, e os seus universos psicológicos, o motor da escrita. Assim aconteceu com o seu romance de estreia, Na Senda da Memória (Esfera do Caos, 2011), e com Deste Lado do Mar Vermelho, o segundo livro, que acaba de lançar. Uma história de amor e morte, para mergulhar nos abismos da alma humana.Qual o foi o ponto de partida para Deste lado do mar vermelho?
A ideia inicial era colocar um grupo de jovens numa espécie de sociabilização tardia. Assim surgiram Jaime, Emídio e Clarisse, três jovens criados em cativeiro. Queria que viessem de um mundo 'despido'. Interessava-me fazer uma comparação implícita entre as regras que os mantiveram naquele 'casulo' e todas as outras que suportam a vida social tal como a conhecemos. E perceber, depois, como iriam reagir perante a sociedade, como iria funcionar esse processo de libertação, e, por outro lado, de que forma iriam, ou não, alterar a rotina ou despertar algum tipo de consciência nas pessoas que encontrariam.
A história dos três jovens cruza-se com a da sua família de acolhimento: Custódio, Lia e um cão chamado Pide.
O Custódio, inicialmente, era para ser uma personagem secundária, mas abraçou-me de tal maneira que passou a ser uma das principais. É alguém que anda a moer uma dor imensa, causada pela morte da mulher e do filho. Mexe-se em espaços muito pequenos, fechados. Quando uma pessoa está a distrocer dores e convive e se move em espaços abertos, elas vão-se dissolvendo de alguma forma. Agora, quando se fecha e se vira para dentro, a libertação custa mais. O Custódio é a imagem de uma pessoa virada para dentro, para espaços pequenos - desde o seu escritório às folhas onde escreve poesia, de papel quadriculado (esta escolha não foi inocente...). A questão passa por perceber até que ponto estes jovens têm força para trazê-lo de volta.
À semelhança do primeiro romance, explora o universo psicológico das personagens. É o que mais lhe interessa?
Já tive mais certezas em relação à escrita do que agora. À medida que amadurecemos, vamos perdendo aquilo que inicialmente tínhamos como certo. Mas essa certeza tenho, a de que gosto de explorar o universo psicológico das personagens. Não precisamos de localizar a história no tempo e no espaço (não sou muito fã do romance histórico, por exemplo...). Com este livro, percebi uma coisa muito curiosa: quando comecei a escrevè-lo, só tinha aquela ideia de arranque; entretanto, fui construindo as personagens - aí, sim, perdi bastante tempo; e, a partir daí, foram elas que passaram a assumir o comando da história. Cada fala, cada ação. Foram as personagens que desenharam a história.
Neste segundo livro, a escrita parece ser mais 'contida'.
Sim, comecei a sentir necessidade de aprofundar essa economia semântica (cortar os adjetivos, criar mais imagens, etc.). O caminho da literatura é muito longo... E a noção de perfeição começa, de alguma forma, assombrar-nos e depois o processo é esse: perseguir um certo ideal de beleza ao nível da escrita, da história....Talvez este seja um passo em frente nessa busca.
Fonte:JL
Deste Lado do Mar Vermelho
Sónia Cravo
Estampa
Maio 2013
120 pp
12,99 euros
Três jovens criados em cativeiro. Uma família de acolhimento também ela com muitas cicatrizes: Custódio, que vive uma espécie de loucura silenciosa, e uma mulher faminta de afectos. Um cão chamado Pide e uma verdade que melhor será nunca chegarem a conhecer. São estes os ingredientes desta empolgante história onde amor e morte se cruzam, quais eternos favoritos dos romances de grande densidade humana.
Na Senda da Memória
Sónia Cravo
Esfera do Caos
Setembro 2011
14,90 euros
Muito provavelmente, uma das revelações do ano no domínio da literatura em língua portuguesa. Literatura, entenda-se, naquele sentido clássico e robusto que nos remete para a arte de bem escrever…«Sónia Cravo surge agora com uma narrativa surpreendente a todos os títulos: original quer a nível do tema central e dos motivos que lhe dão consistência e complexidade, quer a nível da sua riqueza vocabular, tão inusual que deixa quem lê suspenso entre o arcaísmo e o neologismo, entre o achado escritural e o acaso tipográfico (tão joyceano), fazendo a frase explodir perante os nossos olhos suspensos. E isto acontece quase continuamente, num ritmo que não deixa sossegar o mais prevenido dos leitores. (…) Mateus, o narrador de toda esta estória de que é personagem nuclear, começa por nos surgir como alguém que não vê senão sexo em cada mulher que o rodeia, e disso faz obsessão central do seu dia-a-dia; mas que, por um acaso que a seu tempo o leitor descobrirá, vê-se obrigado, entre dois assassinatos que balizam os acontecimentos, a enveredar por caminhos e a viver situações de todo inusitadas, num terror constante em que «o silêncio multiplica ideias» que o vão dilacerando. (…) Eis um texto que, a todos os níveis, surpreenderá o leitor. E como uma boa estória (um bom romance aberto) é aquela que, no fim, nos confronta com múltiplos possíveis horizontes, assim acontece aqui: «E no silêncio ouço-me, há uma voz que sussurra: espera, espera só mais um pouco.» Espera: paciência e esperança. Que futuro estará reservado a Mateus?
José Ferraz Diogo, Excerto das Palavras de abertura
Fonte: pesquisa.fnac.pt/ia331018/Sonia-Cravo
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