Pedro Sena-Lino
Despaís. Como suicidar um país
Porto Editora
336 pp
15,50 euros
Por Miguel Real
(Os Dias da Prosa)-JL
Romance de intervenção, um dos raríssimos romances burlescos portugueses publicados este século, Despaís. Como suicidar um país, de Pedro Sena-Lino, evidencia-se como uma narrativa de revolta contra o sentido político das instituições sociais atualmente reinantes em Portugal e de denúncia contra as elites que as têm dominado, nomeadamente o Estado, provocando intencionalmente o afundamento político, económico e, sobretudo, civilizacional do país, levando-o ao "suicídio" (um referendo popular sobre a extinção de Portugal promovido pela "Plataforma Viriato", de extrema-direita)
Pedro Sena-Lino (PSL), conhecido crítico literário e professor de escrita criativa, pertencente a uma nova geração de emigrantes culturais involuntários, publicou, no campo do romance, 333 (2009). Este seu primeiro romance impressionou seja, como autor, pela erudição histórico-literária e bibliófila de alto nível, seja, ao nível da estrutura de composição, pela capacidade narrativa de criação de múltiplas breves histórias sem perda da unidade estética do texto. Foi um belíssimo romance de estreia.
Despaís. Como suicidar um país possui um estatuto radicalmente diferente. Radicado no ano de 2023, consiste num texto de intervenção social e política destinado a dar voz romanesca a uma nova geração ( a geração dos "precários") e a fazer "despertar" a consciência de revolta da maioria dos leitores, levando-os a uma espécie de insurreição popular. É um texto com explícito e evidente destinatário: o leitor humanista, letrado, com conhecimentos históricos, que assiste hoje, impotente, desprovido de mecanismos instituicionais para fazer valer o seu protesto, à humilhação e ao aviltamento de Portugal operados por uma elite classificada no romance como "neoliberal", elite que, a um nível mais profundo, se encontra apostada em retirar todas as benesses que tinham feito dos portugueses um povo com uma qualidade de vida europeia - justamente, uma das medidas económicas de que a elite política se serve para compensar o défice do Estado consiste no pagamento direto do ensino básico pelos país, anulando o ensino gratuito em Portugal.
Qual o instrumento literário que o autor usa para denunciar e desmascarar a pretensa elite aviltadora da história e dos valores tradicionais de Portugal?
Em primeiro lugar, a sátira, caricaturando e ridicularizando as suas personagens representativas. Assim são trabalhadas as personagens do primeiro-ministro, Sebastião Afonso, o "Capitão Franguinhas", um homossexual fellinesco traumatizado pela história ilustre da família e por uma antiga relação carnal em Berlim com um enigmático Hans, os ministros, os assessores, as secretárias de Estado, as secretárias pessoais, a personagem do "gestor", com a absolutização do jargão económico, como se a anãlise do todo da sociedade se reduzisse a esta ciência, a da "velha", exemplo de mulher idosa e pobre, "Afonso", exemplo de menino exitencialmente desorientado pela mudança brusca de comportamento do país (de gastos ostentatórios para escassez absoluta, expulsos de casa por impossilidade de pagamento da prestação mensal ao banco).
Em segundo lugar, aperfeiçoando o elemento satírico, PSL, em inúmeras situações e sobretudo na caracterização do ministro das Finanças, Judas da Silva, apaniguado do "Quadrado" (substituro da troika com a entrada da FICO, Associação Internacional de Empresas Financeiras), arrasta o texto para o elemento burlesco.
Judas da Silva é, de facto, uma verdadeira personagem burlesca, centro de um autêntico carnaval de efeitos grotescos, cujas consequências se evidenciam pela sua natureza extremada, a começar pela intenção monstruosa e disforme que move a personagem ao longo de todo o texto: levar à falência a maioria dos cidadãos, forçá-los a endividarem-se à FICO, que lhes fica com as casas para destruir prédios, já que só está interessada nos terrenos, vendidos posteriormente a sociedades financeiras internacionais para fins turísticos e de divertimento. Assim são vendidos o Sul e o Centro de Portugal, país que fica reduzido ao Norte, destinado pela FICO a ser dirigido pelo "traidor" Judas da Silva como prémio pela sua ação destruidora, gorada no entanto pela intervenção do presidente da Assembleia da República e pelo Presidente da República, dois políticos humanistas, e pelas tropas espanholas.
Uma personagem burlesca exige situações burlescas. E é assim que dois terços de Portugal é vendido, que se estuda a venda dos Mosteiro dos Jerónimos a uma empresa asiática, que se promove um referendo sobre o fim de Portugal, cuja população resistente, comandada pelo jornalista Bartolomeu Henriques, embarca nas "Crisias" e regressa ao mar: prefere a expectante incerteza do mar à total incerteza da vida em Portugal, país governado por elites autistas e interesseiras.
Texto a necessitar de uma última revisão estilística (percebe-se que foi escrito sob o fogo da paixão da revolta e o fulgor da atualidade), é, no entanto, um ótimo exemplo da intervenção empenhada do artista na cidade, fazendo valer o seu protesto e a sua indignação, não por meios convencionais, como os restantes cidadãos, mas em forma de texto narrativo, usando como instrumento, neste caso, um estilo satírico e burlesco. Outra coisa não fizeram Gil Vicente, o Eça d'A Relíquia, o Camilo d' A Queda de um Anjo, o Saramago de Ensaio sobre a Lucidez, o Lobo Antunes d' As Naus, o Rui Zink d' A Instalação do Medo e tantos outros.
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