24 agosto 2013

Outras Estantes: Os Maias Revisitados - Parte 4

Se assinalam os 125 anos da sua edição(Os Maias) e uma iniciativa Expresso (Eça Agora) veio chamar a atenção para a obra e a efeméride. De facto, o conhecido semanário oferece o romance, em très edições consecutivas, a que se seguirão, em outras três edições, textos de seis escritores atuais que "trazem" Os Maias até 1973- e um sétimo e último volume sairá um estudo, sobre o romance, do reputado especialista queirosiano Carlos Reis.
E é deste colunista o texto a seguir. Maria do Rosário Cunha, falará sobre a futura edição crítica de Os Maias. Kyldes Batista Vicente, sobre a minissérie da TV Globo que os teve por base- enquanto se lembram também suas adaptações ao teatro (bem como a falhada tentativa do próprio Eça), com o testemunho da encenadora Filomena Oliveira.  E ainda o que pretende ser uma sua próxima adaptação ao cinema, em entrevista com o realizador João Botelho.
Alguns tópicos de uma releitura 
Por Carlos Reis

Por que razão ou razões relemos um romance? Por exemplo: porque a sua complexidade requer outra e outra(s) leitura(s), porque trabalhamos sobre ele, porque amadurecemos e desejamos reencontrá-lo com olhos refeitos por esse amadurecimento. Ou simplesmente porque ele é, conforme a expressão banal diz, o livro da nossa vida, esse que nos fica quando muitas outras coisas passaram ou vão passando.
Das minhas releituras d'Os Maias retive algumas revelações curiosas. Como quem diz: fui reajustando imagens, refigurando personagens, descobrindo minudências aparentemente irrelevantes, dessas que me permitiram, há alguns anos, falar numa estética do pormenor que n'Os Maias se ilustra. Por exemplo: aquele "bando de pardais (que) veio gralhar um momento nos ramos de uma alta árvore que roçava a varanda", no amago episódio em que Afonso da Maia se acha na solidão decorrente da rutura com Pedro. A presença de Vilaça pai é ali meramente funcional (é ele quem traz a notícia do casamento de Pedro); não assim com aquele bando de pardais, que, por contraste, tornam mais denso e sombrio o episódio de que falo. E sobretudo dão o testemunho de um outro realismo, aquele que não prescinde de pormenores que dão do real representado uma imagem multímoda e plural, refugindo ao esquematismo de um programa estético pré-determinado. Ou seja: num texto de Eça nada está por acaso.
Dentre todas as revelações de que falei não esqueço nem esquecerei aquela a que fui conduzido por uma certa releitura d'Os Maias. Refiro-me à imagem reelaborada da grande personagem que é Afonso da Maia-porque, além do mais, Eça foi também um grande autor de personagens. Durante algum tempo, Afonso foi, para mim, uma figura imponente e fisicamente impressiva; e "lembrava, como dizia Carlos, um varão esforçado das idades heroicas, um D. Duarte de Meneses ou um Afonso de Albuquerque" (cap. 1). Só que um pouco antes e a abrir este parágrafo, pode ler-se: Afonso era um pouco baixo, maciço, de ombros quadrados e fortes."  Repito: "um pouco baixo".
De onde vinha, então, a imagem de grandeza que me estava gravada? Nem mais nem menos do que da derradeira aparição de Afonso, no capítulo XVII, naquele arrepiante encontro com o neto, quando ambos sabiam já da tragédia do incesto. É de madrugada, Carlos regressa de casa de Maria Eduarda, torturado pela culpa e pelo horror da desgraça que se abateu sobre a família; e quando reentra no Ramalhete, surge Afonso da Maia: "O clarão chegava, crescendo; passos lentos, pesados, pisavam surdamente o tapete; a luz surgiu - e com ela o avô em mangas de camisa, lívido, mudo, grande, espetral."
Para se entender a aparente divergência desta figura (agora) "grande", relativamente a quem antes era "um pouco baixo", é preciso estar atento a duas coisas, dessas que podem escapar a uma primeira leitura. Primeira: ambas as imagens são filtradas e mesmo distorcidas pelo olhar e pelas emoções de Carlos da Maia. Segunda: a grandeza de Afonso, naquele momento decisivo em que mudamente interpela o neto - "e os dois olhos do velho, vermelhos, esgazeados, cheios de horror, caíram sobre ele, ficaram sobre ele, varando-o até às profundidades da alma, lendo lá o seu segredo" - não é física, mas moral. É essa sua dimensão moral, aliás, que o impôe ao longo do romance como referência de valores e de comportamentos, perante a fauna de amigos e conhecidos que circulam pelo Ramalhete - incluindo quem, como Carlos, descuida o exemplo do "varão heroico" que o avô representa.
As releituras d'Os Maias não são apenas (o que já seria muito) atos de reencontro e processos de reajustamento semântico de um texto longo, complexo e tecnicamente muito elaborado. São também oportunidades para lermos o eco de outras aventuras artísticas que o gênio queirosiano antecipou.
Recordo que Eça trabalhou este romance durante cerca de oito anos, com avanços e recuos, desânimos e entusiasmos, num tempo que, para o escritor, foi de busca de novos rumos estéticos. Às vezes penso que nunca faremos um ideia precisa do que era, naquela época, o esforço exigido para se levar até o fim a redação, a cópia, o árduo trabalho de emenda (em sucessivas campanhas de escrita) e a correção de provas tipográficas de romances com esta dimensão, sejam eles Os Maias, La Regenta ou Guerra e Paz. Mais: esse exigente labor (até o ponto de vista físico: pense-se no que eram os instrumentos de escrita da época) foi acompanhado, por parte de Eça, por uma reflexão doutrinária muito lúcida e consequente. Vivendo fora de Portugal, Eça estava em boas condições para acompanhar o evoluir da vida cultural e literária europeia e para perceber, como poucos no seu tempo, os rumos e os desafios que essa vida cultural colocava..
Lembro que foi durante a composição d'Os Maias que Eça escreveu alguns dos seus mais significativos textos doutrinários: por exemplo, em 1884, a carta-prefácio d'O Brasileiro Soares, de Luís de Magalhães, em 1886; e sobretudo, no mesmo ano, o admirável prólogo dos Azulejos do Conde de Arnoso, texto de arguta e elegante reflexão acerca da pertinência estética do naturalismo, da sua receção portuguesa, do alargamento do mercado de bens culturais (assim mesmo, como um Bourdieu avant la letre), das mutações técnicas que alteraram a relação entre o escritor e o público e do potencial de transcendência e de sobrevivência das grandes obras artísticas..
É muito disto que encontramos n'Os Maias, quando os lemos como romance virado para questões de índole literária. É que Tomás de Alencar e João da Ega (e até, em parte, Carlos da Maia) são escritores em potência ou no ativo. E são-no num tempo em que a literatura e o escritor detinham um poder institucional e simbólico considerável. Por iso Os Maias incluem vários momentos de ponderação metaliterária e metacultura, às vezes temperados pela paródia a que Eça dificilmente resistia.
Só para dar um exemplo: o capítulo VIII ( o do passeio a Sintra) não é apenas um episódio de pausa na intriga e de dececionante desencontro (Carlos ia em busca de Maria Eduarda, afinal ausente). O espaço de Sintra e a sua relação com os temas, com os valores e com as vivências de um romantismo cada vez mais convencional estimulam reações em que é bem audível (mas quase sempre caricatural) o propósito de embutir na ficção a doutrina, o imaginário e os mitos literários do romantismo.
Dois exemplos: é em Sintra que o burlesco Palma Cavalão reage azedamente ao olhar sobranceiro de Carlos da Maia. Assim: "olhem, o Herculano é capaz de fazer belos artigos e estilo catita... Agora tragam-no cá para lidar com espanholas e veremos! Não dá meia.." E é já no final do capítulo que Alencar (era ele quem tinha que estar em Sintra e não Maria Eduarda) mistura receitas literárias com receitas de cozinha: "Porque, lá isso, rapazes, versos os farão outros melhor; bacalhau, não!"
Por estas e por outras, Tomás de Alencar saiu das páginas do romance e prolongou a sua vida ficcional num caso de polémica que é parte integrante da chamada receção imediata d'Os Maias (lembro um livro de António Apolinário Lourenço, O Grande Maia, de 2000). Refiro-me à reação de Bulhão Pato e de Pinheiro Chagas (sempre este homem fatal!, diria Eça) a propósito de Alencar como possível caricatura do poeta da Paquita. A resposta do grande romancista a esta acusação (e vá-se lá saber se Eça seria capaz de resistir à tentação daquela caricatura...) é um notável texto de ironia e de agilidade argumentativa, publicado em 1889 com o título "Tomás de Alencar (Uma explicação)" (inserto nas Cartas Públicas, edição de Ana Teresa Peixinho na Imprensa Nacional-Casa da Moeda).
Seja ou não fundada a ofensa de Pato, aquele texto é, em embrião, um tratado de teoria da ficção, envolvendo não só (e sempre) a questão do realismo e da representação, mas também a da sobrevida das figuras ficcionais na sua relação com o mundo real. Esse mesmo de onde talvez elas tenham vindo e para onde acabam por regressar, quando o génio de um escritor é capaz de projetar para a posteridade o que elas são e significam. Também por isso, reler Os Maias é uma aventura sem fim.
Fonte: JL



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