25 janeiro 2014

Outras Estantes: O(s) pensamento(s) único(s)

Texto de Jacinto Rêgo de Almeida

As crianças, os loucos e os muitos velhos podem expressar o que pensam com inteira liberdade, ou seja, o pensamento único. Mas o cantor e compositor de rock e escritor brasileiro João Luis Woerdenbag Filho, conhecido como Lobão, 55 anos, também conquistou esse estatuto.
Ocorre-me a este propósito que os embaixadores da Grã-Bretanha ao saírem de um posto têm a tradição de comunicar ao seu governo, em documento secreto, as suas impressões pessoais sobre o país que os acolheu. (Alguns dos mais famosos documentos transcritos no livro Parting Shots e segundo algumas informações essa tradição teria infelizmente sido interrompida ou cancelada tendo em vista a proteção das sensibilidades diplomáticas...).
Claro que enquanto estão em funções, hóspedes de governos estrangeiros, são treinados para não o fazerem como todos os altos funcionários internacionais ou diplomatas de carreira por esse mundo afora. Apenas um exemplo (parte de comunicação enviada em 1967 pelo embaixador Roger Pinsent ao Foreign Office, ao deixar o seu posto em Manágua): "Temo não haver dúvida de que o nicaraguense médio é um dos latino-americanos mais desonestos, inconfiáveis, violentos e beberrões. Sua versão da língua espanhola é a menos atraente que já ouvi."
Num país com pouca tradição de liberdade como Portugal (na nossa História, com exceção dos últimos anos, a repressão e a censura quase sempre estiveram presentes) não me ocorre nenhum exemplo respeitável destas práticas de liberdade. De forma geral estamos sempre a medir as palavras para expressar o "pensamento único", ou seja: a ausência de pensamento próprio.
Mas o brasileiro Lobão é um caso à parte, ele faz questão de não deixar pedra sobre pedra. É considerado um artista criativo, inteligente, polémico e , claro, provocador, e nada faz crer que afirme o que não sente. Recentemente, por ocasião da publicação do seu livro Manifesto do nada na terra do nunca, uma compilação de ideias do autor sobre o Brasil, "um país que não quer crescer", e sobre si próprio, e contra a corrente dominante a respeito do progresso no país, ele escreve e diz o que poucos se atreveriam a exprimir.
Sobre sua vida pessoal salienta que deixou de usar cocaína, maconha ou outras substâncias ilícitas ("apesar de ter uma genética ótima e sempre ter usado tudo de maneira bastante criativa") porque já não se conseguia concentrar para ler os clássicos e compor e tocar música. Rechaça a teoria do "bom selvagem" de Rousseau, e em relação à cultura brasileira considera que as ideias oriundas da Semana da Arte Moderna(1922) e do "Manifesto Antropofágico", de Oswald de Andrade (1840-1954), "índios de boutique com penacho Chanel na cabeça", não passam de nacionalismo barato e equivocado.
De positivo só houve a vontade de mudar e considera que a semana de 22 deu origem ao Concretismo, à Música Popular Brasileira, ao Cinema Novo e à Tropicália, tudo "uma porcaria muito grande", um atraso, ainda conetado com o Brasil atual, baseado nos cânones: preguiça, precariedade e mau caretismo. O brasileiro nunca foi tão malandro como agora, afirma, e "vive a divertir-se em ruas quebradas com passatempos de quinta categoria, músicas que só podem causar atrofia no cerebelo e, na política, os militantes são a coisa mais cafona e mais rasteira que há. Detesto aquela coisa de linguiça com cachaça, sandália de couro e barbicha... amamos a pobreza".
O bom regime político, afirma ainda, é "chamar todo o mundo para a prosperidade, ganhar o Nobel da Literatura, da Economia, mas ficamos a exportar bunda, axé, pagode, coisas de terceira categoria". Acha a música de protesto fora do seu tempo e não responde às provocações que recebe ("Quem é você para opinar? Um drogado, um roqueiro..."), nem às acusações da esquerda de ser "reacionário e roqueiro decadente".
Mas a metralhadora giratória do Lobão não fica por aí: "... a flacidez filosófica e a mediocridade nacionalista se espraiam hegemónicas. Todo o mundo almeja ser funcionário público, militante de partido, intelectual subvencionado pelo governo ou celebridade de televisão", diz. E critica Chico Buarque de Holanda, "um ícone da esquerda festiva, sempre a enaltecer os humildes, os pivetes, as prostitutas e os sem-terra". Rema com vigor contra a esquerda caviar, radicais chiques que vivem em grandes apartamentos de cobertura e veem-se a si próprios como moralmente superiores. Antigamente essa esquerda elogiava os racistas dos Panteras Negras e hoje defendem as invasões do Movimento sem Terra, os corruptos do PT e alguns ditadores sanguinários comunistas, afirma. Critica Cuba e considera Che Guevara um facínora e psicopata. Lobão não esconde o seu "passado negro" de militante do PT e ainda considera o multiculturalismo uma posição defendida pelo " segregacionismo arrogante".
Parece-me merecer alguma reflexão  o facto de algumas opiniões de Lobão em relação ao Brasil atual terem pontos de contacto com as comunicações ao Foreign Office do embaixador da Grã-Bretanha no Rio de Janeiro, entre 1958 e 1963, G. A. Walinger , e também as de John Russel, embaixador em Brasília, entre 1966 e 1969 (no período da ditadura militar) por ocasião das suas transferências para outros postos.
" Por que, então o Brasil ainda não é rico e próspero?", indaga o embaixador Russel no item nº 10 da sua comunicação após descrever as imensas riquezas naturais do país. "É que o país é governado de forma desastrosa. O Estado da Guanabara tem mais funcionários públicos do que New York; a Petrobrás, só em  S. Paulo, emprega um maior número de químicos do que a Shell no mundo inteiro; pode-se comprar qualquer coisa - de uma carta de condução a um juiz do Supremo Tribunal Federal...; o país tem apenas 18 mil milhas de estradas asfaltadas e em 1968 os brasileiros mataram 10 mil pessoas nas estradas -mais do que o total de soldados americanos mortos no Vietnam no mesmo ano", escreveu o embaixador. Reconhecendo porém que "a política de terra arrasada dos coronéis interrompeu o desenvolvimento espiritual de um país potencialmente brilhante".
Um texto que poderia ter sido escrito por Lobão, pensei.
Fonte: JL (Coluna- Crônica-jul/13)

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