Somente mulheres femininas eram permitidas na Rússia - e eu não era feminina.
Clarice Lispector, em sonho narrado em sua biografia, Why this world
Sabem aquela velha frase-chave pra selecionar namorado, "que livro você levaria para uma ilha deserta"? Pois é. Deixou de fazer qualquer sentido. Eu já havia respondido que levaria o Ulysses, mas agora me corrijo: levaria o Kindle e os 1500 livros que por ventura cabem nele (Ulysses incluído, claro), ah, tudo bem. Tem quem poderia dizer pra atrapalhar minha festa... e a bateria? Como é que você faria pra recarregar a bateria numa ilha deserta?
Bem. Melhor esquecer. Afinal de contas, a questão é apenas retórica, não é mesmo? Quem é que pretende hoje em dia, com tantos sites obrigatórios de relacionamento, se isolar realmente numa ilha deserta? Ou até mesmo embarcar num navio?
De volta ao Kindle, pois é: acabei de ganhar o meu, uma das raras e boas surpresas verdadeiras que tive na vida, gente!, eu juro que não esperava isso. E foi logo paixão à primeira vista, isto é, ao primeiro toque, porque à primeira vista, devo confessar, o Kindle parece pequeno demais, frágil demais, simples demais, embora eu na verdade esperasse que ele fosse de plástico, assim, digamos, mais vagabundinho, bem mais descartável do que realmente é. Mas ao tocar pela primeira vez o botão que o liga, ah, que sensação inesquecível! O Kindle é leve, fácil de manusear, comprar livros é incrivelmente instintivo (nem precisa digitar nem confirmar número algum, nem senha, nem nada, 60 segundos et voilà!, está lá o livro novo na sua mesa) e ainda vem com dicionário embutido, nunca mais a cabeceira entupida de livros.
Melhor ainda é o livro que escolhi para estrear este admirável gadget novo, cá entre nós que não sou de gadgets, nunca fui: não tenho iPod, nem iPhone, nem Blackberry nem nada disso, apenas um indispensável Nokia velho com câmera, sabem como é, e um notebook HP quebrado que ops, acabou de travar de novo, ô vida.
Toca a desligar, esperar, tentar reiniciar, mas eu não estava falando, ou começando a falar, da nova biografia de Clarice Lispector?
O curioso é que sem que eu jamais tenha sido fã, nem dedicadamente lido tudo que ela deixou disponível, minha vida parece intrincadamente misturada à dela, com suas incômodas origens binacionais e tudo o mais, segundo Benjamin Moser, autor do livro, uma questão central para a enigmática escritora: faz pouco tempo que descobri, imaginem, que a dedicada acompanhante de mamãe foi também acompanhante até a morte do ex-marido de Clarice, vítima de derrames sucessivos, que até a morte foi afetado pela forte presença pós-mortem da primeira esposa, segundo ele "uma pessoa muito maluca". E foi justamente esta acompanhante que trouxe do Rio para mim na manhã de ontem, em mãos, o precioso presente enviado por meu irmão: meu Amazon Kindle.
Ainda estou no comecinho do livro, mas já posso afirmar, com o tom de exagero que me é peculiar, que converti-me irremediavelmente ao Kindle ao ler na cama sobre a vida de Clarice. Nunca mais aqueles livros pesados, aquele virar a página por fora do cobertor que é tão complicado aqui na Serra nos dias mais frios, o dicionário sempre ao lado, e pior, pobres traduções para o português, nunca mais, agora que tenho à distância de um toque sem fio o acesso barato a todos os originais, que cheiro de papel que nada.
Como disse no outro dia aquele meu amigo por email, a quem eu andava ansiosa por uma brecha para citar, "Jeff Bezos é meu pastor, nada há de me faltar".
[o tijolão por baixo do Kindle é Infinite Jest, um portento de 1070 páginas que tento ler há mais de um ano mas não consigo, deve ser quem sabe por causa do peso do livro]
Noga Sklar nasceu em Tibérias, Israel, em 1952. Graduou-se em arquitetura no Rio de Janeiro. Desde 2004, dedica-se exclusivamente à literatura e escreve diariamente no Noga Bloga, seu bem-sucedido blog de crônicas. O gozo de Ulysses - As múltiplas línguas de James Joyce é seu terceiro livro publicado.
Link permanente··- publicado por VerdesTrigos @ 11/18/2009 10:30:00
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