A mobilização da sociedade egípcia, que derrubou o ditador Hosni Mubarak (1928), fez os olhos do mundo se voltarem para o país. Em um esforço para acabar com um governo autoritário de 30 anos de existência, a revolução trouxe à luz problemas até então submergidos no silêncio aparente da população. Porém, mesmo sendo uma novidade para muitos, essa ânsia por mudanças tem sido claramente retratada nas produções cinematográfica e literária dos últimos anos, que desempenham papel central na dinâmica cultural de todo o mundo árabe. Assim, desafiando os limites da censura, escritores e cineastas reivindicam liberdade de expressão e para a mulher na sociedade, assim como retratam a miséria a que estão submetidas as classes sociais menos favorecidas.
ENCRUZILHADA DAS IMAGENS
Com posição dominante no mundo árabe, a indústria cinematográfica egípcia vive um momento de contradição. Dessa maneira, se nos anos 1950 era considerada uma das mais importantes do globo – tanto pela quantidade de trabalhos produzidos como pelo número de espectadores –, hoje precisa conviver com o peso desse legado, ao mesmo tempo que luta, de um lado, contra a demanda por filmes comerciais e, de outro, contra a censura do governo e de grupos conservadores. O país dispõe de grande quantidade de produtoras e cinemas, de forma que os trabalhos produzidos precisam ser rentáveis internamente, diferentemente de países como Síria, Líbano e Palestina, onde os filmes são feitos com a mira em mercados externos.
A importância da indústria cinematográfica egípcia remonta a meados de 1900, quando o país projetou o primeiro filme sonoro do mundo islâmico. Em seus primeiros anos e até a década de 1940, o mercado se concentrava na criação de musicais e comédias, que apresentavam, antes de mais nada, caráter de entretenimento.
Esse tom começou a modificar-se a partir da década de 1950, quando Gamal Abdel Nasser (1918 – 1970) assumiu o poder no país, adotando uma política nacionalista que pretendia suprir as necessidades das classes menos favorecidas. Assim, influenciados por Nasser e também pelas ideias do cinema neorrealista italiano, os filmes passaram a apresentar aspectos históricos e patrióticos, além de retratar a vida da população mais humilde. Arlene Clemesha, professora de história e cultura árabe e diretora do Centro de Estudos Árabes da Universidade de São Paulo (USP), lembra que o realismo no cinema do país não foi somente resultado da influência italiana. De acordo com ela, segundo Salah Abu Seif, Kamal Selim teria vendido ao diretor italiano Vittorio De Sica o projeto de roteiro que, em 1948, se transformou em Ladrões de bicicleta. “Com a diferença de que a bicicleta, no caso de Selim, era uma vaca”, afirma. A tônica socialista do regime de Nasser desapareceu quando o governo de direita de Anuar Sadat (predecessor de Mubarak) tomou o poder em 1970. Com isso, o cinema estereotipado e comercial ganhou força.
Alberto Elena, professor da Universidade Carlos III de Madri e especialista em cinema árabe, lembra que outra tendência iniciada na época de Nasser está relacionada à forma como a mulher é retratada nos filmes. Assim, se até esse momento os personagens femininos eram submissos e castos, a partir dos anos 1950 a mulher começou a ser mostrada com olhar mais positivo e maior liberdade.
O melodrama Insônia, de Salah Abu Seyf, rodado em 1957, é um dos exemplos desse processo de mudança. O filme conta a história de Nádia (interpretada por Faten Hamama) que, diferentemente das heroínas castas e ingênuas da época, mantinha uma relação de ciúme obsessivo com o pai divorciado. Em sua luta desesperada para destruir a nova relação amorosa do pai, Nádia expressa desejos desequilibrados e aniquiladores, não atuando como a típica vítima passiva da sociedade. “Durante muito tempo, o melodrama foi considerado um gênero conservador. E o filme de Abu Seyf permite concluir que essa é uma visão equivocada, já que exige mudanças sociais ao inovar na forma como retrata a mulher”, diz o professor.
Arlene concorda com Elena no sentido de que a tradição do melodrama no cinema egípcio (que teve seu auge de 1940 a 1960) está inevitavelmente conectada com as tensões sociais do momento. De acordo com Elena, nas produções mais recentes, os personagens femininos são sujeitos desejantes, que querem experimentar sua sexualidade e, não ser reconhecidos como vítimas da sociedade. “Hoje, há uma grande variedade de temas, incluindo a questão das drogas, que ganhou espaço nos anos 80 e os novos ricos, nos 90”, diz Arlene, recordando que de 15 até 20% dos recursos para produzir filmes no país vêm do governo e o restante de países petrolíferos e de empresários do Golfo Pérsico.
Porém, mesmo com visões renovadas da mulher e da sociedade, a indústria local sofre com as limitações da censura. A cineasta egípcia Nádia Kamel, nascida em 1961 e que, no início de sua carreira, trabalhou com Youssef Chahine, afirma que muitos deixam de fazer cinema devido ao conservadorismo da sociedade e à censura política. “No cinema egípcio e no mundo, impera uma mentalidade que não se importa com quem tem algo relevante a dizer e sim com quem pode gerar lucros ou oferecer uma visão turística das coisas. E minha história é basicamente tentar ser cineasta fora desse sistema comercial”, diz ela.
O último trabalho da diretora é o documentário Salata baladi (Salada mista), lançado em 2007, que tem o conflito entre judeus e árabes como tema central. No entanto, a obra não adota os típicos discursos pró-Palestina ou pró-Israel, retratando o conflito de forma complexa e subjetiva, já que se centra na história da família da própria autora.
Além de Chahine – que Nádia considera o cineasta mais importante do país por conseguir posicionar-se no mercado sem o apoio do establishment –, a diretora também trabalhou com a documentarista Ateyat el Abnoudy, que valoriza por “atuar de forma independente e retratar os pobres e marginalizados”. Karim Hauser, diretor do programa Arábia Americana, da Casa Árabe de Madri, explica que há cada vez mais cineastas independentes realizando curtas-metragens no Egito, inclusive sem autorização oficial, difícil de obter. “É o que chamamos de ‘guerrilha sem fundos’”, diz o diretor.
ALÉM DA CENSURA
Mesmo com o peso dos censores e da atuação de setores conservadores da sociedade, o mercado editorial do Egito ainda é um dos mais frutíferos do mundo árabe. Assim, no panorama atual proliferam, de um lado, as típicas narrativas centradas no cotidiano de grandes centros urbanos e, de outro, surgem autores que abordam temas diversificados, entre eles as relações entre diferentes grupos religiosos, o papel da mulher, o compromisso político e a imigração. “A censura existe, mas muitos textos contemporâneos tratam de tópicos controversos, que em outros países árabes jamais sairiam à luz”, destaca Rasha Chatta, doutoranda na School of Oriental and African Studies (SOAS), da Universidade de Londres.
No Egito, não existe um comitê censor e, sim uma lista de livros não recomendados pelo governo e que, portanto, são retirados do mercado. São obras que as forças políticas e instituições religiosas julgam desrespeitosas com os valores morais e nacionais da sociedade. No entanto, Luz Gomez Garcia, professora titular de estudos árabes na Universidade Autônoma de Madri, acredita que o pior problema não é a tal lista negra, e sim a autocensura que os próprios autores se impõem.
Dono da editora independente Al-Dar, o escritor egípcio Makkawi Said (Cairo, 1955) está de acordo com a professora, no sentido de que a censura mais perigosa é a informal. “As autoridades controlam autores considerados subversivos por meio de grupos conservadores que vigiam o que é publicado”, diz. E essa pressão faz com que escritores tenham medo de escrever sobre certos temas, entre eles corrupção política, críticas aos grupos dominantes, religião e sexualidade.
Já Hamdy Abu Golayyel, escritor egípcio de origem beduína, afirma que a censura está mais suave no país, já que, em outros tempos, o governo cortaria sua cabeça por publicar o livro Ladrones jubilados (ainda sem tradução para o português). Baseada na vida do próprio autor, a obra aborda o cotidiano de um imigrante beduíno que chega ao Cairo e se estabelece em um edifício precário habitado por personagens decadentes. “Acredito que só existe uma natureza humana, mas essa se molda em função do cotidiano de cada um. O indivíduo tem muito mais liberdade para ser ele mesmo no Ocidente”, diz.
Seguindo uma tradição iniciada por Naguib Mahfouz [único prêmio Nobel do mundo árabe], o livro de Golayyel se centra no dia a dia de personagens que vivem em um edifício de uma cidade grande, tática também adotada por Alaa al-Aswani, autor de Edifício Yacoubian, de 2007, fenômeno de vendas da história do Egito. Luz lembra que esse tipo de narrativa pode ser um caminho para o interessado em conhecer a realidade literária mais tradicional do país. “É a chamada literatura do estranhamento, arraigada no local, que retrata a sociedade egípcia de forma exotizante. Nem sempre é a de melhor qualidade, mas sim a mais ilustrativa”, afirma.
Para Hauser, Khaled al Khamissi e Alaa al Aswany são os autores mais lidos do momento, porque falam de problemas contemporâneos. Nascido no México e de família egípcia, ele acredita que a obra de Aswany se tornou best-seller ao tratar de temas proibidos, entre eles a corrupção do regime e o radicalismo religioso.
De outro lado, a professora aponta duas tendências inovadoras na literatura do país. A primeira, relacionada com o trabalho da escritora Miral al-Tahawi, introduz o universo dos beduínos nas narrativas e trata da força das mulheres na transmissão do conhecimento e da cultura local. O outro aspecto, que pode ser observado na obra de Muntasir al-Qaffash, inclui o uso da linguagem imediata da internet, rompendo os padrões usados para descrever acontecimentos e a cronologia da história.
Entre o texto e a imagem, outra forma de representação da realidade que ganha cada vez mais espaço são as histórias em quadrinhos. Recentemente, a editora italiana Sirente publicou uma novela gráfica sobre os acontecimentos no Cairo. Alguns estudiosos dizem, inclusive, que a arte egípcia antiga já era uma forma arcaica de quadrinhos, já que contava histórias de maneira sequencial e justaposta.
DO PROTESTO À PROPÓSTA
Como se de repente esse desejo de mudanças retratado na literatura e no cinema ultrapassasse os limites da imaginação, a revolução no Egito deixou o mundo boquiaberto com seu caráter surpreendente. “Em tempos em que cientistas políticos e analistas econômicos presumem poder antecipar todas as tendências globais, os acontecimentos no Egito reivindicam a volta da política como ação espontânea, coletiva e baseada na vontade do povo. E o caráter imprevisível é um de seus aspectos mais interessantes”, diz Pere Vilanova, professor doutor de Ciência Política da Universidade de Barcelona.
Esse elemento surpresa afetou diretamente Mamede Mustafá Jarouche, professor de língua e literatura árabe na Universidade de São Paulo e famoso no país pela sua tradução de As mil e uma noites. O arabista, que viajou ao Cairo como parte de suas atividades acadêmicas, conta que apenas alguns dias antes de a revolução explodir, a movimentação era imperceptível aos olhos de um estrangeiro. “Vi pessoas serem presas em cafés e algumas aglomerações nas ruas, mas nada que anunciasse uma revolução. Nem os militares armados sabiam que os protestos ganhariam tal dimensão”, afirma.
Mesmo sem precisar os motivos pelos quais a revolução estourou justamente agora, observadores atentos asseguram que ela reflete um profundo mal-estar na sociedade, que foi ganhando força a despeito do aparente silêncio e da submissão das pessoas. Atrelado às razões socioeconômicas, à falta de liberdade de expressão, um dos fatores do descontentamento da sociedade egípcia também se relaciona com a grande quantidade de jovens formados e sem emprego. Mònica Rius, arabista e diretora do curso de mestrado Mundo Árabe e Islâmico na Universidade de Barcelona, diz que, no país, a pirâmide da população está invertida em comparação com a Europa, de forma que há muitas pessoas novas e com altos níveis de qualificação sem trabalhar.
E, para esse descontentamento vir à tona, faltava uma centelha estourar, o que aconteceu com a imolação de protesto do jovem Mohamed Bouazizi, na Tunísia. “Ao atear-se fogo, iniciou uma revolta que se estendeu para todo o mundo árabe. É um caminho sem retorno contra líderes opressores e clientes do colonialismo”, afirma José Farhat, cientista político e colunista do Instituto de Cultura Árabe (Icarabe) do Brasil.
Atrelada à potência dos movimentos de protesto, a recusa do exército a reprimir a população com violência também foi fundamental no processo. Isso porque, diferentemente do que ocorre na Tunísia, onde o corpo militar funciona como uma organização independente dos poderes públicos, no Egito ele faz parte do governo. “Mesmo sendo ainda muito novo, Mubarak, assim como Sadat, fazia parte do grupo de Jovens Oficiais Livres criado por Gamal Abdel Nasser em 1953”, lembra Vilanova.
Para os especialistas, no entanto, é preciso considerar os desafios que o Egito enfrenta para conseguir iniciar o processo de transição para a democracia. “Na Tunísia, depois da saída de Ben Ali, os mesmos políticos corruptos continuam governando o país, enquanto o ex-presidente leva uma vida de luxo no exterior. Espero que o mesmo não ocorra no Egito, porém há um perigo evidente”, alerta Mònica
Na mesma linha de pensamento da professora, Bernabé López García, catedrático de História Contemporânea da Universidade Autônoma de Madri, acredita que um grande problema será desfazer o sistema de corrupção e domínio em vigor na política egípcia há mais de 60 anos. Além disso, também é necessário estabilizar a situação nas ruas e convertê-la em uma negociação política ampla, de forma a abranger todos os setores da sociedade, incluindo o partido de Mubarak e a Irmandade Muçulmana.
E, contrariamente ao que se pode imaginar, a questão do fundamentalismo islâmico, que muitos relacionam com a Irmandade figura como última preocupação dos especialistas, pois, apesar de participar de algumas ações violentas, o grupo foi muito mais perseguido do que perseguiu, desde sua formação em 1928 até hoje.
PODER DA CRIATIVIDADE
Um resumo dos temas abordados nas obras de alguns dos mais destacados escritores e cineastas egípcios e que retratam a ânsia por mudanças
LITERATURA
Ahmed Fouad Negm (1929) – Poeta e ex-membro do partido oficial. Nos anos 1990, fez poesias a favor da privatização e hoje apoia os jovens revolucionários.
Alaa Al Aswany (1957) – O cotidiano da vida urbana no Egito e a imigração são alguns temas tratados em seus livros.
Bahaa Taher (1935) – Seu imaginário visita questões como o exílio, a hierarquia social, o orientalismo e a relação entre pessoas de diferentes religiões.
Edward al-Kharrat (1926) – Escritor, poeta, crítico, tradutor e editor caracterizado por usar mitos, símbolos e metáforas em suas histórias.
Gamal al-Ghitani (1945) – Escreveu romances históricos e hoje é editor do semanário cultural Akhbar al-Adab.
Khaled al-Khamissi (1962) – Como temas centrais, aborda a vida cotidiana no país, a imigração e o exílio.
Miral al-Tahawi (1968) – O poder feminino e a vida beduína são algumas das temáticas de seus trabalhos.
Muhammad al-Makhzangui (1950) – Médico e contista, viveu na Ucrânia, onde presenciou a tragédia de Chernobil.
Muntasir al-Qaffash (1964) – Autor conhecido por usar a linguagem imediata de programas como Facebook e Twitter em suas narrativas.
Naguib Mahfouz (1911 – 2006) – Único escritor em língua árabe a ganhar um Prêmio Nobel. Sua extensa obra abarca desde temas relacionados ao Egito faraônico até histórias surrealistas e oníricas.
Nawal El Saadawi (1931) – Aborda a situação da mulher e a desesperança da sociedade.
Radwa Ashour (1946) – Autora do livro The Granada Trilogy, ambientado em Granada depois que muçulmanos e judeus são expulsos pelos cristãos.
Sonallah Ibrahim (1947) – Ex-membro do partido comunista, o autor usa a mulher e a experiência de prisão política como alguns temas de seus livros.
Yusuf Idris (1927 – 1991) – Autor de romances, contos e teatro, sendo um forte defensor dos direitos humanos e da liberdade de expressão.
CINEMA
Hala Khlil (1967) – Autora de curtas-metragens, longas de ficção e documentários, que retratam relações sociais e conflitos psicológicos.
Marwan Hamed (1977) – Adaptou para o cinema Edifício Yacoubian, livro de Alaa al-Aswani.
Oussama Fawzy (1961)) – Autor de dois longas-metragens: Demônios do asfalto e Paraíso de anjos caídos.
Radwan El-Kashef (1952) – Aborda o mundo dos marginalizados na sociedade egípcia.
Salah Abu Seif (1915 – 1996) – Considerado o pai do cinema realista.
Yusri Nasrallah (1952) – Retrata tipos sociais e o universo das emoções femininas.
Youssef Chahine (1926 – 2008) – Sua extensa obra inclui desde trabalhos autobiográficos até um curta sobre o 11 de setembro.
Revista da Cultura
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