Se assinalam os 125 anos da sua edição(Os Maias) e uma iniciativa Expresso (Eça Agora) veio chamar a atenção para a obra e a efeméride. De facto, o conhecido semanário oferece o romance, em très edições consecutivas, a que se seguirão, em outras três edições, textos de seis escritores atuais que "trazem" Os Maias até 1973- e um sétimo e último volume sairá um estudo, sobre o romance, do reputado especialista queirosiano Carlos Reis. Maria do Rosário Cunha, falará sobre a futura edição crítica de Os Maias. Kyldes Batista Vicente, sobre a minissérie da TV Globo que os teve por base- enquanto se lembram também suas adaptações ao teatro (bem como a falhada tentativa do próprio Eça), com o testemunho da encenadora Filomena Oliveira. E ainda o que pretende ser uma sua próxima adaptação ao cinema, em entrevista com o realizador João Botelho.
Para uma edição crítica
Maria do Rosário Cunha *
No início de 1881, Eça de Queirós ocupava-se já com a redacção d'Os Maias, conforme afirma numa carta a Ernesto Chardron, com data de 16 de janeiro, justificando o atraso na revisão das provas d'A Capital!: "Tem V. Exª razão, mil vezes razão, a respeito da Capital! Mas que quer? Meti-me nesta empresa dos Maias que deviam ser apenas uma novela, e que se tornaram um verdadeiro romance! E tenho gasto todo este tempo a trabalhar neles!" E acrescenta: "Felizmente vejo breve(o) fim desta obra - e então em pouco tempo, querendo Deus, a Capital estará pronta. Porque não creia que eu não tenha também trabalhado nela , aqui e além; mas trabalho casual que pouco adianta: os Maias absorvem-me."
Estas palavras permitem situar o início da gestação d'Os Maias no ano de 1880, pelo menos, sendo possível até que o romance "à espera de vez", de que fala a Ramalho Ortigão, em carta de 28 de setembro de 1878, fosse já o seu embrião: ainda sem título definido, era a história de um incesto, mas, segundo afirmava, "tratado com tanta reserva que não choca".
Seja como for, o certo é que quando Eça escreve a Chardron, em janeiro de 81, a elaboração d'Os Maias, já com o título com que virá a ser publicado, estaria numa fase que, monopolizando o ímpeto criativo do escritor, lhe permitia reclassificar a obra genologicamente, de acordo com a amplitude que esta fora adquirindo. O que vem a ser confirmado, um mês depois, em nova carta a Ramalho: o romance, "robusto e nédio livro em dois volumes", estava "pronto no manuscrito inicial", os três primeiros capítulos enviados para impressão, e outros capítulos já copiados e à espera de seguirem o mesmo caminho.
O processo complica-se, porém, e, no Verão do ano seguinte, Eça queixa-se a Ramalho de estarem impressos apenas quatro capítulos, facto que atribui à incompetência da empresa a quem fora confiada a tarefa. A partir de 1883, a responsabilidade da edição passa, por fim, para as mãos de Ernesto Chardron. Mas os cinco anos que, a partir de então, são ainda necessários ao aparecimento do romance desmentem a simplicidade que o escritor atribuía ao processo de revisão das provas tipográficas: "Eles mandam-me primeiras provas de composição, que eu revejo; em seguida remetem-me, não provas segundas, mas provas de páginas, que revejo, devolvo- e acabou-se" (carta a Ramalho, de 10 de agosto de 1882).
Sem ignorar as frequentes queixas de Eça relativamente à incúria dos tipógrafos, ao seu peculiar processo de escrita fica a dever-se a publicação, em 1888, de um romance que o escritor afirmava estar terminando em 1882. Só em outubro de 1887, no entanto, Eça anuncia a Jules Genelioux, sucessor de Chardron, entretanto falecido, ter enviado à tipografia o final do romance, ficando na sua posse, para revisão, o penúltimo capítulo. Em 19 de abril de 1888 espera ainda as duas últimas páginas, reclamando igualmente de Genelioux a revisão da página 8: "Cette feuille 8me j'avais l'intention de la laisser telle qu'elle est, après tout. En la rekisant cependant (...), je vois qu'elle fourmille d'erreurs trop grossiers et quíl est important de la reimprimer.(...)Ainsi vous voyez que je n'ai plus deja grand chose à faire. Je serais très satisfait vers la moitié de Mai". Não será em maio, contudo, mas no final de junho que o livro aparece.
As exigências de ordem estética e ética que sempre acompanharam o trabalho do escritor estão plenamente documentadas na extensa correspondência trocada com familiares e amigos. Todos os romances que escreveu lhe suscitaram tais dúvidas e, no que repeita a Os Maias, por mais de uma vez as manifestou. Em 1882, a 3 de junho, nomeadamente, escrevia a Ramalho: "Eu não estou contente com o romance: é vago, difuso, fora dos gonzos da realidade, seco, e estando para a bela obra de arte, como o gesso está para o mármore. Não importa. Tem aqui e além uma página viva- e é uma espécie de exercício, de prática, para eu depois fazer melhor".
A esta necessidade de "fazer melhor" ficaram a dever-se os enormes lapsos de tempo decorridos entre o momento em que anunciava a conclusão de uma obra e aquele em que essa obra era realmente concluída. Entretanto, no "vai e vem" das provas tipográficas, as correções ou, na maior parte dos casos, em acrescentos entrelinhados ou registados em longas tiras de papel coladas às páginas originais, do que resultava um produto inteiramente diferente daquele que inicialmente chegara às mão dos tipógrafos.
Desta incessante procura do termo justo e da forma perfeita resultou um conjunto precioso de materiais - manuscritos e impressos - que hoje permitem reconstituir diferentes fases e estratégias de construção da narrativa queirosiana. Nem sempre, contudo, esses materiais foram preservados, e, no caso d'Os Maias, justamente, são escassos os elementos que poderiam levar à descoberta das diferentes fases de gestação e amadurecimento do romance onde, como escreve ao amigo Ramalho, em 20 de fevereiro de 1881, decidira "(pôr) tudo o que (tinha) no saco".
No espólio que a família de Eça de Queirós entregou à guarda da Biblioteca Nacional, na década de 70 do século passado, apenas dois manuscritos podem ser associados ao processo de elaboração e redação do romance. Um deles, composto por seis folhas escritas a lápis de ambos os lados e sem título, apresenta um conjunto de descrições, variantes umas das outras, de paisagens naturais. Em termos de construção narrativa, trata-se de um documento de trabalho que, por tentativas, procede à representação do espaço permitindo reconhecer o cenário do passeio a Sintra, que ocorre no capítulo VIII.
O outro, composto por cinco folhas igualmente escritas a lápis de ambos os lados, apresenta uma série de descrições independentes entre si, a maior parte das quais incide sobre a tourada: sobre aspetos técnicos do espetáculo, sobre o recinto da praça de touros e sobre o público que a ela acorre e nela se encontra. Como é sabido, não existe qualquer tourada n"Os Maias. Mas as notações de luz e cor, de calor e pó, e do tédio que se desprende da paisagem humana, tristonha e séria, remetem claramente para o episódio das corridas de cavalos, que ocupa o capítulo X do romance. As razões que terão levado Eça a substituir pelas corridas de cavalos o espetáculo genuinamente português da tourada, sem desaproveitar totalmente o documento de trabalho que este manuscrito representa, serão ponderadas, no texto introdutório à edição crítica que se encontra em fase de preparação*
O trabalho exigido por esta edição não levanta particulares problemas, dada a inexistência de variantes que lancem dúvidas sobre a vontade definitiva do autor relativamente ao texto que deixou. Ainda assim, não podem ser ignorados os excertos que, antes de 1888, foram publicados em alguns períodicos, nomeadamente no Correio da Manhã (1884), n' A Ilustração (1886) e no Almanaque das Senhoras Portuguesas e Brasileiras para 1888 (1887): conhecendo o processo de escrita de Eça de Queirós, não é possível ignorar a hipótese de alguma divergência relativamente ao texto final, publicado em 1888. É sobre este texto, primeira e única edição em vida do autor, com uma tiragem de 5000 exemplares, que incide a fixação do texto da edição crítica.*
* Maria do Rosário Cunha é profª da Universidade Aberta e autora de vários livros sobre Eça, estando a preparar, com Carlos Reis, a edição crítica d'Os Maias, para a Imprensa Nacional/Casa da Moeda.
Estas palavras permitem situar o início da gestação d'Os Maias no ano de 1880, pelo menos, sendo possível até que o romance "à espera de vez", de que fala a Ramalho Ortigão, em carta de 28 de setembro de 1878, fosse já o seu embrião: ainda sem título definido, era a história de um incesto, mas, segundo afirmava, "tratado com tanta reserva que não choca".
Seja como for, o certo é que quando Eça escreve a Chardron, em janeiro de 81, a elaboração d'Os Maias, já com o título com que virá a ser publicado, estaria numa fase que, monopolizando o ímpeto criativo do escritor, lhe permitia reclassificar a obra genologicamente, de acordo com a amplitude que esta fora adquirindo. O que vem a ser confirmado, um mês depois, em nova carta a Ramalho: o romance, "robusto e nédio livro em dois volumes", estava "pronto no manuscrito inicial", os três primeiros capítulos enviados para impressão, e outros capítulos já copiados e à espera de seguirem o mesmo caminho.
O processo complica-se, porém, e, no Verão do ano seguinte, Eça queixa-se a Ramalho de estarem impressos apenas quatro capítulos, facto que atribui à incompetência da empresa a quem fora confiada a tarefa. A partir de 1883, a responsabilidade da edição passa, por fim, para as mãos de Ernesto Chardron. Mas os cinco anos que, a partir de então, são ainda necessários ao aparecimento do romance desmentem a simplicidade que o escritor atribuía ao processo de revisão das provas tipográficas: "Eles mandam-me primeiras provas de composição, que eu revejo; em seguida remetem-me, não provas segundas, mas provas de páginas, que revejo, devolvo- e acabou-se" (carta a Ramalho, de 10 de agosto de 1882).
Sem ignorar as frequentes queixas de Eça relativamente à incúria dos tipógrafos, ao seu peculiar processo de escrita fica a dever-se a publicação, em 1888, de um romance que o escritor afirmava estar terminando em 1882. Só em outubro de 1887, no entanto, Eça anuncia a Jules Genelioux, sucessor de Chardron, entretanto falecido, ter enviado à tipografia o final do romance, ficando na sua posse, para revisão, o penúltimo capítulo. Em 19 de abril de 1888 espera ainda as duas últimas páginas, reclamando igualmente de Genelioux a revisão da página 8: "Cette feuille 8me j'avais l'intention de la laisser telle qu'elle est, après tout. En la rekisant cependant (...), je vois qu'elle fourmille d'erreurs trop grossiers et quíl est important de la reimprimer.(...)Ainsi vous voyez que je n'ai plus deja grand chose à faire. Je serais très satisfait vers la moitié de Mai". Não será em maio, contudo, mas no final de junho que o livro aparece.
As exigências de ordem estética e ética que sempre acompanharam o trabalho do escritor estão plenamente documentadas na extensa correspondência trocada com familiares e amigos. Todos os romances que escreveu lhe suscitaram tais dúvidas e, no que repeita a Os Maias, por mais de uma vez as manifestou. Em 1882, a 3 de junho, nomeadamente, escrevia a Ramalho: "Eu não estou contente com o romance: é vago, difuso, fora dos gonzos da realidade, seco, e estando para a bela obra de arte, como o gesso está para o mármore. Não importa. Tem aqui e além uma página viva- e é uma espécie de exercício, de prática, para eu depois fazer melhor".
A esta necessidade de "fazer melhor" ficaram a dever-se os enormes lapsos de tempo decorridos entre o momento em que anunciava a conclusão de uma obra e aquele em que essa obra era realmente concluída. Entretanto, no "vai e vem" das provas tipográficas, as correções ou, na maior parte dos casos, em acrescentos entrelinhados ou registados em longas tiras de papel coladas às páginas originais, do que resultava um produto inteiramente diferente daquele que inicialmente chegara às mão dos tipógrafos.
Desta incessante procura do termo justo e da forma perfeita resultou um conjunto precioso de materiais - manuscritos e impressos - que hoje permitem reconstituir diferentes fases e estratégias de construção da narrativa queirosiana. Nem sempre, contudo, esses materiais foram preservados, e, no caso d'Os Maias, justamente, são escassos os elementos que poderiam levar à descoberta das diferentes fases de gestação e amadurecimento do romance onde, como escreve ao amigo Ramalho, em 20 de fevereiro de 1881, decidira "(pôr) tudo o que (tinha) no saco".
No espólio que a família de Eça de Queirós entregou à guarda da Biblioteca Nacional, na década de 70 do século passado, apenas dois manuscritos podem ser associados ao processo de elaboração e redação do romance. Um deles, composto por seis folhas escritas a lápis de ambos os lados e sem título, apresenta um conjunto de descrições, variantes umas das outras, de paisagens naturais. Em termos de construção narrativa, trata-se de um documento de trabalho que, por tentativas, procede à representação do espaço permitindo reconhecer o cenário do passeio a Sintra, que ocorre no capítulo VIII.
O outro, composto por cinco folhas igualmente escritas a lápis de ambos os lados, apresenta uma série de descrições independentes entre si, a maior parte das quais incide sobre a tourada: sobre aspetos técnicos do espetáculo, sobre o recinto da praça de touros e sobre o público que a ela acorre e nela se encontra. Como é sabido, não existe qualquer tourada n"Os Maias. Mas as notações de luz e cor, de calor e pó, e do tédio que se desprende da paisagem humana, tristonha e séria, remetem claramente para o episódio das corridas de cavalos, que ocupa o capítulo X do romance. As razões que terão levado Eça a substituir pelas corridas de cavalos o espetáculo genuinamente português da tourada, sem desaproveitar totalmente o documento de trabalho que este manuscrito representa, serão ponderadas, no texto introdutório à edição crítica que se encontra em fase de preparação*
O trabalho exigido por esta edição não levanta particulares problemas, dada a inexistência de variantes que lancem dúvidas sobre a vontade definitiva do autor relativamente ao texto que deixou. Ainda assim, não podem ser ignorados os excertos que, antes de 1888, foram publicados em alguns períodicos, nomeadamente no Correio da Manhã (1884), n' A Ilustração (1886) e no Almanaque das Senhoras Portuguesas e Brasileiras para 1888 (1887): conhecendo o processo de escrita de Eça de Queirós, não é possível ignorar a hipótese de alguma divergência relativamente ao texto final, publicado em 1888. É sobre este texto, primeira e única edição em vida do autor, com uma tiragem de 5000 exemplares, que incide a fixação do texto da edição crítica.*
* Maria do Rosário Cunha é profª da Universidade Aberta e autora de vários livros sobre Eça, estando a preparar, com Carlos Reis, a edição crítica d'Os Maias, para a Imprensa Nacional/Casa da Moeda.
Fonte: JL
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