03 maio 2011

Política e literatura

Publicação: 16 de Maio de 2010
Marcelo Alves Dias de Souza - procurador da República 

É fato que escrevi, nas últimas semanas, sobre política, essencialmente sobre a política do Reino Unido. “E já basta”, o leitor mais enfezado poderá dizer. Então passemos, até para evitar uma tão constrangedora reprimenda, a outro assunto: literatura. Mas passemos suavemente, pois, como disse o maior do poetas portugueses, “mais vale saber passar silenciosamente. E sem desassosegos grandes”. E se da política à literatura inglesa vamos, nada melhor que façamos por intermédio de duas personagens que, nos séculos XIX e XX, respectivamente, com grande desenvoltura, marcaram presença nesses dois mundos: Benjamin Disraeli (1804-1881) e Winston Churchill (1874-1965) .

Na política, Benjamin Disraeli, Primeiro Earl of Beaconsfield e grande amigo da Rainha Victoria, foi, pelo Partido Conservador, duas vezes Primeiro-Ministro do  Reino Unido (1868 e 1874-1880), além de haver ocupado inúmeros outros cargos durante pelo menos quarenta anos de vida pública. A história política do Reino registra sobretudo sua intensa rivalidade com William Gladstone (1809-1898), que, apesar da antipatia da Rainha, em uma carreira política de mais de 60 anos, foi, representando o Partido Liberal, quatro vezes Primeiro-Ministro (1868-1874, 1880-1885, 1886 and 1892-1894). E essa rivalidade, entre Tories e Whigs, entre Disraeli e Gladstone, pautou por mais de um quarto de século a política na terra de Shakespeare. 

Na letras, Disraeli, dotado de solidez intelectual e com formação em direito, incursionou por vários estilos e, assim como na política, angariou admiradores e desafetos. Quem sabe não esteja aí a explicação para o fato de ele estar fora do cânone da literatura da era vitoriana (apesar de seus desafetos/críticos, menos complacentes, atribuírem isso às deficiências intrínsecas à sua obra). O Disraeli-escritor deve seu status, certamente, aos inúmeros romances que escreveu. Desde o primeiro deles, “Vivian Grey” (publicado anonimamente em 1826) - mas, sobretudo, com sua trilogia “Coninasby” (1844), “Sybil” (1845) e “Tancred” (1847) - alcançou grande fama. As composições dessa trilogia, como informa o “(The) Oxford Companion to English Literature”, podem ser consideradas como os primeiros romances políticos em língua inglesa (algo que foi posteriormente desenvolvido por contemporâneos seus como Anthony Trollope). Na trilogia, Disraeli, ao mesmo tempo que demostra simpatia pelos oprimidos (para alguns, sobretudo seus adversários políticos, uma simpatia fingida), retrata as mais eminentes figuras de seu tempo com fina ironia, mostrando, às escâncaras, a alta sociedade e a política de então. Sobretudo com “Sybil, or The Two Nations” (alegadamente a mais refinada de suas obras, onde ele consegue denunciar o horror de uma nação dividida entre pobres e ricos), Disraeli, não obstante imperialista (vide a aquisição do Canal de Suez no seu segundo Governo), construiu a base para o que seria seu modo de agir e para as reformas que implementou na política interna, com a aprovação, por exemplo, de toda uma legislação protetiva à classe trabalhadora e à saúde. 

Já Winston Churchill é uma das figuras políticas mais lembradas do século passado, sobretudo pelo papel – certamente heróico – que exerceu na 2ª Guerra Mundial, no afã de deter o avanço militar nazista. Sem medo de errar, ele é uma das maiores lideranças em tempo de guerra que a humanidade já produziu. Aliás, sua carreira militar, apesar de reconhecidos insucessos, rivaliza com com sua carreira política, tendo servido como oficial na Índia, no Sudão, na 2ª Guerra Boer e, ainda, na 1ª Guerra Mundial, como First Lord of the Admiralty (algo como nosso Ministro da Marinha), Ministro/Secretário de Estado de Munições, para Guerra e para a Aeronáutica. Em tempos de guerra ou não, Churchill foi ainda Chancellor of the Exchequer (cargo mais ou menos correspondente ao nosso Ministro da Fazenda) e Primeiro-Ministro do Reino Unido por duas vezes (1940-1945 e 1951-1955). Orador brilhante, seus discursos são hoje considerados como clássicos na arte de Demóstenes e Cícero. Quem não se lembra de “sangue, suor e lágrimas” ou de “nunca tantos deveram tanto a tão poucos”?

Mas Churchill era um homem de inúmeras facetas. Além de militar e político, foi pintor diletante, grande bebedor, gastador e apreciador de charutos. Era também dado a recorrentes episódios de depressão (que ele chamava de “Black Dog”), do que padeceu durante toda vida. E ele foi sobretudo um historiador/escritor de imenso talento, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura em 1953. Desde o seu primero livro (publicado em 1898) e quase sempre necessitado de dinheiro, Churchill viveu das rendas das publicações de seus livros ou de artigos em jornais e revistas. Se contados apenas os livros publicados em vida, sua obra passa dos 50 títulos. Dela se destaca, certamente, “A History of the English-Speaking Peoples” (1956-58), obra composta de vários volumes, cobrindo a saga desses povos desde a invasão Romana da Grã-Bretanha Romana por Julio César até os albores da 1ª Guerra Mundial.  No mesmo patamar ou talvez acima estão os vários volumes de “The Second World War” (se não estou enganado, reeditados no Brasil, faz poucos anos, em uma versão mais concentrada de um só volume), suas ambiciosas memórias publicadas entre 1948-1954, combrindo um período que vai desde fins da 1ª até fins da 2ª guerras mundiais, quando o autor não foi só testemunha da história, mas também um de seus grandes protagonistas. Considerada por muitos a mais importante de suas obras, as “memórias”, pelo seu conteúdo e pela qualidade estilística, certamente tiveram um peso decisivo para a obtenção do Prêmio Nobel. 

As coincidências nas vidas de Disraeli e Churchill são inúmeras. Ambos eram “animais” políticos, no que a expressão tenha mais a ver com a política partidária. Mas ambos foram também grandes estadistas. Disreali, assim como Churchill, foi levado à literatura, se diz, em virtude de precária situação financeira. De certa maneira, ambos tiveram suas “carreiras” literárias eclipsadas pelas brilhantes carreiras na política. Sobretudo, a obra de ficção de Disraeli pode ser lida como as memórias (antecipadas) que ele, diferentemente de Churchill, jamais escreveu. E ambos, assim, fizeram política em literatura.

Jornal Tribuna do Norte.

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