22 fevereiro 2014

Outras Estantes: Os Maias Revisitados- Parte 15

João da Ega: Memórias de um Átomo
Seis romancistas 'inventam' um início para o romance que a famosa personagem d'Os Maias desejava escrever e o sétimo imagina a sua estrutura.
5) Teolinda Gersão

Dourados leitores de uma época distante, cujos olhos futuros percorrerão avidamente estas linhas, é por vós que me entrego, trêmulo de emoção e tomado de reverencial temor, à tarefa ingente de narrar as memórias de uma existência tão longa, acidentada e vária como a do próprio incomensurável Universo. É a vós que dedico esta obra, redigida a partir de um lugar rasteiro e mínimo, pelo bico de uma pena que avança, incerta e insegura, sobre a folha ainda virgem do papel. Não olheis, dourados leitores, para a minha humilde pequenez atómica, e valorizai antes a minha vontade de vos alcançar, nessa luz que à distância de milènios vos doura, nesse ponto do tempo em que estais a salvo da miséria, do asco, da inominável estultícia da época em que por desgraça me situo. (De nada valeria o esforço de levar a cabo a obra a que, aqui e agora, me comprometo, se fossem apenas de hoje os seus leitores. Falaria no deserto, para mentes fechadas e orelhas moucas. Já noutra época, que adiante narrarei porque dela guardo memórias indeléveis, não faltaram, pregando no deserto, os pregadores mais insignes. E o seu fracasso deixou-me, por mais de mil anos, desalentado e mudo).
Sei no entanto que por vós serei ouvido e entendido, conheceis outras leis e sociedades e tendes uma visão lúcida e justa: estais portanto preparados para fazer comigo esta viagem vertiginosa através do Ser. Invoco por isso a vossa presença a meu lado - desde o primeiro instante de espanto e turbulência em que, a partir do nada, tudo começou. A vós, e a nenhuma inexistente divindade, me confio. Não serei capaz deste empreendimento sem que a vossa companhia benfazeja me sirva de luzeiro e guia. Sede a estrela do norte, o poder inspirador, a força que me leva, a mim miserável átomo, a atravessar, no bico de uma pena, o vendaval do tempo. Protegei-me dos perigos desta tarefa desmedida e sobre-humana. Mas sobretudo protegei-me da mão que segura a pena, do braço  que segura a mão, do corpo que segura  o braço, do homem sentado à escrivaninha a quem pertencem o corpo, o braço, a mão esgrouviada e a pena: um desgraçado inútil e ridículo, de nariz adunco e de bigode, com um caco de vidro encaixado num olho, que sempre viveu da mesada da mãe e da generosidade dos amigos,  e usa todo o tipo de excessos e demagogias para chamar as atenções a qualquer preço, porque tem um ego do tamanho do mundo. Como aliás o seu nome indica, pois chama-se João do Ego (embora ele o disfarce, usando-o astuciosamente na forma feminina, João da Ega). Pois é sobretudo contra esse energúmeno, dourados leitores, que invoco, com fé inabalável, a vossa proteção: o sujeito, que sempre viveu à custa de outrem, quer agora viver à minha custa, identificar-se comigo e assinar com o seu nome estas Memórias inteiramente minhas. Salvai-me, suplico-vos, deste parasita, não permitais que ele escreva por mim o livro que agora eu inicio. Forçai-o riscar, se ele escrever isso, que é da autoria de João da Ega e uma espécie de biografia sua. Guiai a sua mão, fazei que ele siga e respeite o  que eu lhe ditar, da primeira à última linha. Tolerarei de bom grado que concedais ao inepto parasita a ilusão de ser autonómo e de ser autor, desde que o livro seja  sempre meu, porque sou eu que lho dito e desde já lhe ponho um nome, que deverá manter, pela eternidade adiante. As Memórias de um Átomo.          
Fonte: JL   


Post relacionado:
Outras Estantes: Os Maias Revisitados - Parte 14 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

© Retalhos no Mundo - 2013. Todos os direitos reservados.
Criado por: Roberta Santos.
Tecnologia do Blogger.
imagem-logo