João da Ega: Memórias de um Átomo
Seis romancistas 'inventam' um início para o romance que a famosa personagem d'Os Maias desejava escrever e o sétimo imagina a sua estrutura.
6) Mário de Carvalho
"Desde a pristiníssima nebuloda priveva, num dóbar de poeiras amalgamadas em vagares da eternidade, à pena de aço, banal e fugaz do senhor João da Ega, isto foi um rufo. Se me fosse dado preferir, escolheria decerto a imponência, o seu tanto bocejante, daquele cenário imenso, rodando nas imensidões geladas, exprimindo solenemente a grandeza das eras, a este percurso tamanhinho que me levou ao estanqueiro do número doze da rua da Prata, entre caixas de charutos "Blomont" e resmas de papel azul de requerimento, escutando o trote sonolento dos flacres e os ecos das discussões dos galegos e varinas. Certo ancião venerando, num dos seus dias mais entediados, convocou Mefistófeles ao seu gabinete de estrelas e tonitroou- designando a gigantesca nuvem de poeiras de que eu fazia parte: "Vai, carrega uma porção desta matéria e compraz-te em fazer o mal, em conformidade com a função que te foi distribuída". E destarte arregimentado pelo lado do maligno, fui posicionado em tudo o que tem sido reaccionário e vil, devo confessá-lo, com certo gozo. Relatá-lo-ei, de forma positiva e verdadeira, como é próprio deste século de luz, mesmo quando se prefere as trevas. A minha coroa de glória foi ter sido materializado mesmo abaixo do olho esquerdo da serpente que seduziu a pobre Eva. Mas prefiro começar pelo fim, na esteira dos autores mais ousados que, levando ao extremo o preceito do velho Horácio, proclamam o primado das Ultimas Res. Há pouco, tendo exultado por pertencer ao aço do canhão que em revoadas sucessivas arrasou um bairro de Paris e devastou os rebeldes da Comuna, vi-me entregue a uma fundição que através de calores atrozes transfigurou a nobre arma em corriqueiras chapas de metal, estas em penas baratas e reles (substitutas da elegante pena de pato) que rolaram em caixas, no Sud-expresso, para pasmarem na vitrina encardida do senhor Lopes da Rua da Prata. Aqui me encontro, pois, neste negregado momento, à secretária do senhor João da Ega, rabiscando estas linhas, enquanto ele pensa noutras coisas."
Fonte: JL
"Desde a pristiníssima nebuloda priveva, num dóbar de poeiras amalgamadas em vagares da eternidade, à pena de aço, banal e fugaz do senhor João da Ega, isto foi um rufo. Se me fosse dado preferir, escolheria decerto a imponência, o seu tanto bocejante, daquele cenário imenso, rodando nas imensidões geladas, exprimindo solenemente a grandeza das eras, a este percurso tamanhinho que me levou ao estanqueiro do número doze da rua da Prata, entre caixas de charutos "Blomont" e resmas de papel azul de requerimento, escutando o trote sonolento dos flacres e os ecos das discussões dos galegos e varinas. Certo ancião venerando, num dos seus dias mais entediados, convocou Mefistófeles ao seu gabinete de estrelas e tonitroou- designando a gigantesca nuvem de poeiras de que eu fazia parte: "Vai, carrega uma porção desta matéria e compraz-te em fazer o mal, em conformidade com a função que te foi distribuída". E destarte arregimentado pelo lado do maligno, fui posicionado em tudo o que tem sido reaccionário e vil, devo confessá-lo, com certo gozo. Relatá-lo-ei, de forma positiva e verdadeira, como é próprio deste século de luz, mesmo quando se prefere as trevas. A minha coroa de glória foi ter sido materializado mesmo abaixo do olho esquerdo da serpente que seduziu a pobre Eva. Mas prefiro começar pelo fim, na esteira dos autores mais ousados que, levando ao extremo o preceito do velho Horácio, proclamam o primado das Ultimas Res. Há pouco, tendo exultado por pertencer ao aço do canhão que em revoadas sucessivas arrasou um bairro de Paris e devastou os rebeldes da Comuna, vi-me entregue a uma fundição que através de calores atrozes transfigurou a nobre arma em corriqueiras chapas de metal, estas em penas baratas e reles (substitutas da elegante pena de pato) que rolaram em caixas, no Sud-expresso, para pasmarem na vitrina encardida do senhor Lopes da Rua da Prata. Aqui me encontro, pois, neste negregado momento, à secretária do senhor João da Ega, rabiscando estas linhas, enquanto ele pensa noutras coisas."
Fonte: JL
Próximo post: João da Ega: Memórias de um àtomo-Parte 7
Post relacionado:
Nenhum comentário:
Postar um comentário