18 maio 2012

Outras Estantes - Uma realidade perturbante



Dois novos livros
Gonçalo M. Tavares: Uma realidade perturbante
Gonçalo M. Tavares faz parte daquele reduzidíssimo grupo de escritores que alia uma magnífica prosa a uma estonteante produção de escrita. A publicação em simultâneo de dois livros do autor não constitui, por isso, novidade. O que surpreende é a sempre renovada capacidade de, através da sua escrita, interpelar os leitores. Short Movies e Canções Mexicanas, os seus dois mais recentes livros, são disso prova.

Agripina Carriço Vieira
14:07 Quinta feira, 12 de Abr de 2012


Gonçalo M. Tavares faz parte daquele reduzidíssimo grupo de escritores que alia uma magnífica prosa a uma estonteante produção de escrita. A publicação em simultâneo de dois livros do autor não constitui, por isso, novidade. O que surpreende é a sempre renovada capacidade de, através da sua escrita, interpelar os leitores. Short Movies e Canções Mexicanas, os seus dois mais recentes livros, são disso prova. Sem designação genérica o primeiro, com o rótulo "Ficção" o segundo, estamos perante textos de difícil ou impossível classificação, porque de género indefinido, que oscilam entre os registos da crónica, do conto, do ensaio ou do guião, sem nunca obedecerem totalmente às convenções dos diferentes géneros.

Short Movies e Canções Mexicanas são antes de mais uma tomada de consciência do prazer do contador de histórias, que em traços sóbrios e contidos (textos há que não ultrapassam a dezena de linhas) nos revelam um mundo marcado pela violência gratuita, por ameaças brutais, por atitudes e acontecimentos absurdos. Cada história capta fragmentos de um quotidiano, suficientemente costumeiro para o reconhecermos como nosso, mas que se distancia quando mediado pela cáustica voz e irónico olhar do contador. O distanciamento assim criado obriga-nos, no final de cada história, a uma paragem, porque não se passa impunemente por um texto de Gonçalo M. Tavares, lê-lo tem consequências. As suas ficções desnudam uma realidade que perturba a nossa visão da existência humana e desafiam a nossa reflexão.A lente da câmara, estratégia retórica escolhida pelo autor que deste modo assinala através de um objeto concreto o distanciamento da observação que os seus textos refletem, capta acontecimentos anódinos, sem qualquer excecionalidade, que subitamente deixam de o ser: o menino que posa para uma fotografia em vez de ajudar a extinguir um incêndio; um homem que não regressa ao carro depois de o ter abastecido de combustível; a presença de mulheres a arranjarem o cabelo num cenário de total destruição. É através desse olhar da câmara de filmar, pretensamente neutro, que nos dá a ver um mundo perturbado e perturbador, que impiedosamente nos questiona. Como ficar indiferente à demonstração que a velhice não faz perder a vontade de matar, ou que qualquer pessoa pode adotar uma atitude e o seu inverso (ser agredido e agressor, vítima e carrasco), ou ainda que o perigo pode advir de sentimentos tão paradoxais quanto a arrogância (que impede a assunção dos nossos medos) ou a amizade (inimiga da vigilância e da cautela).

Mais do que quadros do quotidiano, cada texto surge antes como retratos de parcelas de algo mais vasto e abrangente que raramente nos é desvendado. A incapacidade de apreensão e entendimento dos acontecimentos que daí advém, presente em todos os textos (embora em níveis diferentes) é, não raras vezes, verbalizada pelo narrador, que nos explica: "E porque continuamos apenas a ver o rosto, não sabemos o que aconteceu" ou "Com o tamanho daquele espelho a mulher não consegue ver o seu rosto na totalidade, precisa de ajuda para isso". A ajuda de que a mulher ao espelho precisa é extensiva ao leitor que também ele se vê impossibilitado de perceber o que lhe é apresentado devido à proximidade da observação. Apenas quando "o plano se abre" é que algumas das situações ou atitudes que nos pareciam absurdas ou inexplicáveis ganham sentido. Quando a lenta da objetiva se afasta, percebemos porque é que nenhum taxista responde ao chamamento da elegante mulher, ou os motivos pelos quais um homem com uma máscara de gás gesticula de modo ridículo, ou ainda o porquê da fotografia do rosto de Hitler colada numa parede estar cravada de buracos.

É com uma interpelação ao leitor que se fecha este conjunto de curtas narrativas, convidando-nos o narrador a refletir acerca da atitude de aparente loucura de uma personagem que sem motivo aparente corre sozinho em redor de uma mesa. E pergunta-nos o narrador: "E tu, por exemplo, se estivesses na mesma situação - a correr como um louco em redor de uma mesa - também não estarias assustado?", sugerindo deste modo que o perigo mais temível não é físico mas imaterial.

Ao contrário da sua anterior produção que se caracteriza por uma ostensiva indeterminação espacial e temporal, Canções Mexicanas leva-nos numa alucinante viagem até à cidade do México. Se nesses romances a não identificação se constituía como uma outra forma de expressar o sentimento de estranheza que habita grande parte das suas personagens, verificamos que este não só se mantém como se agudiza em textos ancorados numa realidade nacional concreta e definida. Com efeito, nas canções que Gonçalo M. Tavares nos oferece, circunscrevendo-se à observação e descrição de espaços conhecidos e reconhecíveis, perpassa uma intensa sensação de estranhamento. Todos os textos são percorridos por um acrescentado sentimento de incompreensão, aquele que invade o viajante europeu ao percorrer as ruas e as praças da cidade do México e que é resumido de modo lapidar no comentário daquele pai que educa o filho à estalada: "Tu vieste de fora e não entendes nada". A sensação de estranhamento perante a cultura do outro, de que a efabulação dá conta, estende-se ainda ao discurso que surge pespontado por expressões ou vocábulos que não respeitam as convenções gramaticais (nomes próprios grafados ora com maiúscula ora com minúscula; textos que não se fecham graficamente). O turista imprudente ou inadvertido é levado numa espiral de loucura e delírio: o delírio provocado pelo mezcal, que distorce a realidade e cria "um redemoinho em cima da cabeça", o delírio da tarantela, essa dança frenética que salva o viajante da morte, mas também o delírio da brutalidade e da violência que a todos envolvem.

Gonçalo M. Tavares dá-nos a conhecer um mundo de loucura que está para além do racional, povoado por seres estranhos: uma prostituta que obriga os clientes, antes de qualquer ato, a beijar um crucifixo, uma menina que exige a esmola aos transeuntes, um polícia que em vez de desenhar os contornos de um corpo sem vida cria intermináveis representações figurativas. Short Movies e Canções Mexicanas revelam-nos um mundo fragmentado e às avessas, que inquieta e desafia o leitor, fazendo apelo ao seu imaginário para a perceção de cada personagem, de cada situação, de cada espaço.
Gonçalo M. Tavares
CANÇÕES MEXICANAS
Relógio D'Água, 96 pp, 14 euros
SHORT MOVIES
Caminho, 160 pp, 11,90 euros 


Fonte: JL

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