Por Guilherme Bryan
A cantora Elba Ramalho completará 60 anos em 17 de agosto e encerra as comemorações dos 30 anos de carreira, completados em 2009, com o CD e DVD Marco Zero – Ao vivo, gravado em 12 de março de 2010, no Marco Zero, em Recife (PE), e agora lançado. Ali estão vários sucessos de sua carreira, como Morena de Angola, O meu amor, De volta pro aconchego, Chorando e cantando e Frevo mulher. Entre os convidados especiais, aparecem Geraldo Azevedo e Zé Ramalho, que, com ela e Alceu Valença, venderam milhões de cópias do projeto O grande encontro, em três volumes.
Com 30 álbuns lançados, Elba Ramalho começou a carreira como baterista da banda de rock As Brasas, teve carreira como atriz no teatro, no cinema e na televisão, a ponto de se considerar uma “cantriz”, participando de clássicos como Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, e A ópera do malandro, de Chico Buarque. Ela lançou o primeiro álbum, Ave de prata em 1979 e, desde o início, chamou a atenção por sua vitalidade e exotismo em cima do palco, apresentando ao grande público de São Paulo e do Rio de Janeiro os mais tradicionais ritmos nordestinos. Entre eles, estão baião, maracatu, xote, frevo, caboclinho e forró, ritmos que povoaram o imaginário desde a infância da menina nascida em Conceição da Paraíba e que tem Luiz Gonzaga como principal referência.
Mãe de Luã, com o cantor Maurício Mattar, e de Maria Clara, Maria Esperança e Maria Paula, as três adotivas, Elba Ramalho recomenda essa experiência, que considera prova de “amor incondicional”. Esbanjando forte espiritualidade, declara que seu livro preferido hoje é a Bíblia, da qual faz questão de ler várias páginas diariamente. A respeito de estar prestes a se tornar sexagenária, declara: “Todo mundo chega lá e espero que chegue como eu, com lucidez, paciência e consciência de que o amor deve ser muito mais elevado em coisas da alma do que deste mundo”.
Como é estar próxima de completar 60 anos?
Não penso na idade, mas no que construo internamente todos os dias, observando onde elevo o espírito, fraquejo, erro e posso melhorar. Com relação à cronologia humana, me sinto confortável, com juventude, saúde e disposição de quem tem uma carreira estável, mais sabedoria e consciência a respeito dos valores morais e éticos com os quais temos que conduzir nossa vida.
Como é comemorar os 30 anos de carreira com o CD e DVD?
Eu tinha de fechar o ciclo dessa comemoração de um ano e pouco dos 30 anos de carreira, iniciado com o álbum Balaio de amor, no qual trouxe novos compositores, com Marco Zero – Ao vivo, para congregar num mesmo espetáculo os meus amigos e o público pernambucano, traduzindo o afeto do resto do Brasil. Esse trabalho também marca a minha relação com a cultura pernambucana, embora seja uma cantora de muitos lugares do mundo, por onde minha cultura se espalha. Foi uma noite de emoção e festa, em que fizemos o melhor que pudemos naquelas circunstâncias. E a história continua. Daqui a pouco, virarei a página desse trabalho e seguirei para outros.
Quando você descobriu que tinha o dom de cantar?
Acho que não descobri. O destino é que foi me conduzindo. Fui para o Rio de Janeiro em 1974, buscando o palco, sem saber se queria ser cantora ou atriz. A música já tinha existido na minha vida como baterista de uma banda de rock e a atriz entrava para fazer sempre trabalhos musicais. Aí, passei a conviver com Zé Ramalho e Geraldo Azevedo, e as circunstâncias me fizeram chegar ao disco. Tive, então, de zerar mais uma vez a minha vida e começar a história da música. Respeito muito os sinais. Gosto da imprevisibilidade e de nada arquitetado, como “vou estabelecer uma carreira assim e vender 1 milhão de discos”.
Qual é a sua impressão sobre seu primeiro álbum, Ave de prata?
Foi um disco importante. Entre erros e acertos, joguei ali toda a minha energia, imaturidade, mas também a vontade de chegar como uma voz nova e definir uma posição na música brasileira. Um jeito diferente de ser e cantar. Fiz o que poderia naquele momento e lembro que parte adorava, outra rejeitava. Mas a história de todo artista é feita assim.
Em algum momento você achou que dedicaria a vida apenas à carreira teatral?
Não. Quando comecei a ser atriz, também comecei a tocar e, quando você é tocado pela música, não desapega nunca mais. Ela é muito forte. Quando a atriz atuava, era em cima de melodias e ritmos. A inspiração vinha sempre dali e nunca me desligava das rodas de música. Acho que, se fosse somente atriz, um lado meu ficaria completamente morto e infeliz.
E como você ganhava dinheiro para sobreviver?
Fui trabalhar na Mesbla [extinta loja de departamentos]. Datilografava a ficha do crediário e ligava para o serviço de aprovação de crédito. Mas trabalhei também em uma ótica e ainda como auxiliar de trânsito, orientando as velhinhas. Quando entrei na Universidade Federal de Pernambuco, virei bolsista da biblioteca e depois estagiário do jornal universitário. Em seguida, fui para a livraria Livro Sete [onde hoje é a Livraria Cultura Paço Alfândega, no Recife], como vendedor.
A experiência teatral é importante para como você se apresenta nos shows?
Me tornei uma “cantriz”. Alguém que canta e atua. O respaldo que o teatro me deu transparece em meus shows. Posso me apropriar da cena com a autoridade de uma atriz e dos textos como quem sabe interpretar. Isso me faz ser a artista que sou.
Qual é a importância de Morte e vida Severina e A ópera do malandro na sua carreira?
Subi ao palco para atuar em Morte e vida Severina quando tinha 16 anos, e me honra bastante ter sido vista pelo próprio João Cabral [de Melo Neto]. Esse é um texto que me persegue, no bom sentido, até hoje, porque o considero um dos poemas mais incríveis em termos de sentimento de nosso povo. Depois, o encenei no cinema e na televisão, quando fui dirigida pelo mestre Walter Avancini. Esse, considero um dos momentos mais brilhantes da televisão brasileira. A ópera do malandro foi meu divisor de águas. Ali, eu estava fechando um ciclo do teatro e conhecendo Chico Buarque, que foi importantíssimo, pois percebeu o meu talento e, com seu jeito simples, mesmo sendo um dos maiores compositores do mundo, me deu a oportunidade de cantar no disco dele. Ele é uma das pessoas mais generosas, bondosas e desprendidas que conheci.
Incomoda ter a imagem muito marcada como cantora regional?
Não. Adoro o slogan “Elba é do Nordeste” ou “Elba canta forró”. Alguns ousam dizer que sou rainha do forró. Mas não sou rainha de nada. Só teve uma rainha, que foi Marinês, rainha do xaxado. Mas represento muito bem o meu Nordeste e, modéstia à parte, sei cantar forró como poucas sabem.
Você acredita que ajudou a resgatar e popularizar alguns ritmos nordestinos? Trouxe para as classes de “a” a “z” do Rio de Janeiro e de São Paulo, os dois grandes centros, um Nordeste que gostaram de ver e ouvir, mas que não conheciam. Talvez não entendessem muito o que era coco, xote, baião, maracatu, frevo e caboclinho, mas viam o todo da artista que estava em cena, fazia espetáculos grandiosos e era histriônica, exuberante e exótica. Eu não me vestia de gibão e chinelo de couro para xaxar e mostrar a regionalidade que tinha conhecido através de Marinês e Luiz Gonzaga. Me vestia, sem querer, como a Tina Turner nos Estados Unidos.
Seu trabalho também ajudou a disseminar a cultura nordestina pelo mundo?
Sempre fui elogiadíssima fora do Brasil. Nunca houve uma crítica contra. Isso me deixa feliz, mas gosto mesmo é de cantar no Brasil.
Luiz Gonzaga continua sua principal referência artística?
Gravei dois álbuns, um em estúdio e outro ao vivo, e um DVD em homenagem a Luiz Gonzaga, que é nosso rei. A nossa história está fundada na obra dele, que teve a oportunidade de traduzir, em seu canto e poesia, os costumes, a cultura e os sentimentos de nosso povo, assim como o canto dos nossos pássaros, a alegria e a dor, a chuva e a seca. Na sequência, vem Dominguinhos, que também é um compositor importante, mais contemporâneo, e um grande instrumentista. Sem esse acordeom, não teríamos nossos ritmos.
Você foi precursora de cantoras como Daniela Mercury e Ivete Sangalo?
Não sou baiana e o movimento de axé na Bahia aconteceria, mesmo se eu não existisse. Não sou prepotente e arrogante o suficiente para me encarar como precursora. Não visto essa carapuça. Talvez em alguma madrugada escura de Ivete e Daniela, que são fantásticas e talentosíssimas, eu as tenha influenciado, inspirado ou elas tenham visto alguma coisa de Elba Ramalho e gostado. Já ouvi Ivete dizer que fui influência para ela, que, quando estava começando, subiu ao meu palco e cantou comigo Bate coração. Daniela também assistiu ao meu show no começo da carreira.
Quais são as cantoras que mais admira?
Fora as antigas, como Dalva de Oliveira, Isaurinha Garcia, Angela Maria, Ademilde Fonseca e Aracy de Almeida, o movimento tropicalista veio num momento muito importante da minha juventude, quando tinha 16, 17 anos. Absorvi muito bem a explosão de Gal e Bethânia, e as tive como referências de estrelas da música brasileira. Vi muitos shows e ouvi os discos delas. Gosto até hoje e tenho a maior admiração e respeito.
Você tinha ideia de que o projeto O grande encontro faria tanto sucesso?
Tinha ideia de que seria bacana, mas nunca crio expectativas do quanto vai vender. Quero que as pessoas vão e saiam felizes. O grande encontro foi um momento único na música brasileira. Quatro artistas fortes e de personalidade, de posicionamento, se juntaram e arrebataram milhões de seguidores. Me senti um pouco uma “Beatle” naquela época (risos), vendo o mesmo ginásio lotado dez vezes e vendendo milhões de discos.
Como é a experiência de ser mãe?
Amo meus filhos. Luã estuda música em Berkeley e minhas três meninas moram comigo. Sempre sonhei adotar, adotei e elas são minhas filhas de alma, coração e sangue. O amor é o mesmo. E acho que todas as pessoas deveriam abrir espaço no coração para esse exercício de amor incondicional.
Você descobriu, no ano passado, um tumor de baixa malignidade no seio?
Foi como um cisco no olho, que você lava, tira e toca sua vida para a frente. Graças a Deus, não tive nada sério, nem complicado. Não fiz quimioterapia e não tenho mais nada. O que tive, muitas mulheres têm silenciosamente, mas tive a tranquilidade de dizer, para que sirva de exemplo outras mulheres. É ter saúde equilibrada e mente serena.
De onde vem essa sua espiritualidade tão forte?
É minha busca, é de toda a vida. Desde adolescente, tenho meus mistérios e conversações internas. Tenho o maior amor a Deus e a fé é meu suporte. Sem ela, não caminho. É a consciência de que precisamos ser mais condescendentes e arregaçar a manga para nos dedicar ao próximo. Tomar a caridade como grande exercício para nossa salvação e eternidade. Para mim, a vida não para com a morte e nem a considero uma coisa sinistra. Sou uma pessoa de oração e compartilhamento. Sigo os passos do meu Cristo e tenho a Virgem Maria como amparo em meu coração.
Qual é a importância da leitura?
Tive a oportunidade de subir ao palco aos 14 anos para declamar um poema de Manuel Bandeira. Outros poetas que me pegaram desde cedo foram Cecília Meireles, Carlos Drummond de Andrade, Maiakóvski, Bertolt Brecht, Mario de Andrade e Oswald de Andrade. Também tenho muitos livros de Vinicius de Moraes e João Cabral [de Melo Neto]. Li muito Edgar Allan Poe, Ernest Hemingway, Jean-Paul Sartre e Platão. Hoje, meu livro predileto é a Bíblia, que me alimenta. Acho que todo mundo deveria sempre entrar numa livraria, pegar um livro, folhear e ler, pois qualquer história bem contada, da forma mais simples, pode transformar, acrescentar muito ao seu espírito e à sua vida.
Você cursou economia e sociologia na Universidade Federal da Paraíba?
Não fui uma adolescente alienada. Quando tinha 15, 16 anos, não vivia nas boates, nem no vazio. Essa base é o que me faz ter consciência, embora ainda não seja plena, do mundo, das pessoas e de todos os assuntos. Sempre gostei muito de ler e estar com pessoas inteligentes. Fui estudar economia mais para agradar meu pai. Em sociologia, me aprofundei bastante. Mas, se tivesse feito escola de música, teria estudado bem mais! ©
Revista da Cultura
Nenhum comentário:
Postar um comentário